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O Relógio e a Eternidade: Santo Agostinho X Heidegger em uma crônica não linear

24 de fevereiro de 2025

Ao olhar para o relógio na parede do quarto do meu filho, vejo o ponteiro marchando como um soldado incansável: preciso, disciplinado, inflexível. Mas, ainda que ele pare, o que representa continuará seguindo sua marcha implacável, consumindo tudo, justificando tudo, sem que nada possa detê-lo. Talvez essa justificação seja o próprio tempo, esse fluxo invisível que tentamos medir, registrar e até controlar, mas que, no fundo, nos controla. Mas será que ele está apenas nos ponteiros ou habita dentro de nós, como um fio tecido entre memória, atenção e expectativa? O passado vive na lembrança, o futuro na esperança, e o presente? Ah, o presente mal se deixa tocar, ele escorre pelos dedos como areia fina, um instante fugaz que já não é quando tentamos agarrá-lo, Santo Agostinho parece ter razão: o tempo é uma distensão da alma. Não o medimos como se mede um objeto; apenas o vivemos e o experimentamos. Mas, afinal, quem avança: sou eu ou o tempo?

Olho para as estrelas pela janela do quarto do meu filho, e elas me contam outra história: o tempo não marcha, ele dança. O tempo primordial, aquele que independe da nossa percepção, move-se como em uma valsa imprevisível, mudando de direção sem que possamos prever seu próximo passo. Estrelas não falam, mas seu brilho ecoa no silêncio do universo com uma eloquência que palavras jamais alcançariam. E, ironicamente, muitas das luzes que agora vejo já não existem há bilhões de anos. Seu brilho, viajante do tempo, só agora chega aos nossos olhos, compondo uma coreografia cósmica que desafia nossa compreensão. Meu pensamento, limitado pelas três dimensões da mente — passado, presente e futuro —, não consegue abarcar essa dança que se estende pelo infinito.

Queremos segurar este tempo, mas ele escapa; queremos entendê-lo, mas logo percebemos que a assertiva de Santo Agostinho continua a nos desafiar: “Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei; se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei.” Queremos prolongar a juventude, mas ela se dissipa como folhas ao vento no outono. Queremos guardar o instante perfeito, mas ele se dissolve sem piedade. O tempo é um rio que nos arrasta sem descanso, e nós, prisioneiros de sua correnteza, seguimos adiante. “Se nossa hora chegar, é tempo de partir.” Se cada segundo vivido nos aproxima do fim, não seria isso um convite para transformar o presente em algo eterno? Talvez a santidade, a sétima morada espiritual, ou mesmo a união definitiva da alma com Deus, resida no presente. Será esse o motivo pelo qual a língua portuguesa lhe deu esse nome? Um dom, um presente que raramente desembrulhamos por completo?

E, no entanto, enquanto reflito sobre o tempo da minha mente, esqueço o das estrelas, que seguem brilhando, indiferentes às minhas inquietações, e ao fato de que, um dia, serei engolido por ele, como por um buraco negro que a tudo absorve. 

A física nos ensina que, se viajarmos rápido o suficiente, o tempo se curva, desacelera, quase para. Um astronauta que percorresse a galáxia poderia voltar e encontrar suas crianças envelhecidas enquanto ele mal teria sentido os anos passarem. O tempo, essa entidade que parecia tão sólida e implacável, revela-se elástico, flexível, um jogo de luz e gravidade. “Cria-se e se destrói ao mesmo tempo no tempo do universo,” sem que possamos deter esse dançarino que com os pés a tudo pisoteia e, ao mesmo tempo, cria. Talvez o tempo não se meça; talvez se viva e se esgote, como concluiu Heidegger. Talvez quem me observe pela janela do quarto do meu filho seja aquele Eu de anos passados, imerso em sua distração, olhando este prédio enquanto se afundava no seu passado e sonhava com o futuro desta janela na qual estou, sem compreender o presente que vivia nem perceber este Eu do futuro que agora o observa.

Por isso volto a Santo Agostinho. Ele também sabia que o tempo passava, que a juventude se desvanecia, mas, ao contrário de Heidegger, não o via como uma prisão. Havia algo além. Segundo o Doutor da Graça, Deus não está sujeito ao tempo; enquanto nós corremos atrás dos minutos, Ele simplesmente é. Em Seu Reino, não há ontem nem amanhã, apenas um eterno agora. Se nossa alma anseia por algo que nunca passa e se angustia ao ser moído pela boca do tempo, não será porque fomos feitos para essa Eternidade? “Momento, permaneça! Ainda não estou pronto para partir.”

Olho para o relógio mais uma vez, o ponteiro segue seu curso, alheio às minhas reflexões, meu filho dorme talvez sonhando com o amanhã ou com o hoje que se torna passado. Mas dentro de mim, uma certeza nasce: se o tempo corre, é porque há um destino para onde ele nos leva: Deus é  a minha jornada, e que eu O encontre no presente e que Ele me dê este presente se eu o merecer — esse instante que me escapa entre os pântanos do futuro e as geleiras do passado. Nossa Senhora, guiai-me através da minha mente inquieta e conduzi-me ao único tempo verdadeiro: o Agora, onde habita Aquele que é antes de todos os tempos, acima dos labirintos da mente e da dança inexorável dos ponteiros.

 

PROFESSOR EDUARDO FARIA