“Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da Vida.” Apocalipse 2,10
Ao retornar de um encontro vocacional da Comunidade Missão Maria de Nazaré, minha esposa comentou casualmente que o santo do dia era São Hermenegildo. Bastou ouvir sobre sua história para que um fluxo intenso de pensamentos me atravessasse — desses lampejos que, sem aviso, tocam a alma e exigem ser acolhidos. No entanto, a intuição, embora clara pela sua natureza independente do homem, logo se turvou — como é próprio da mente ferida pelo pecado. Parte da experiência se perdeu no esforço de compreender, como se as palavras fossem sempre menores do que aquilo que de fato se quer dizer. Ainda assim, permaneceu em mim uma certeza: era preciso escrever, ainda que com a consciência de que escrever é sempre incompleto diante daquilo que se recebe no silêncio. Talvez seja justamente nesse ponto que possamos começar: vivemos tempos em que essa fragmentação da alma humana — causada pela queda original — parece se agravar. Ao longo da história do homem, diferentes épocas e culturas, mesmo fora da fé cristã, buscavam curar essa cisão interior, essa ruptura entre o homem e seu Criador. Mas é na vida dos santos que encontramos respostas e exemplos concretos dessa luta; não como idealizações inatingíveis, mas como pessoas reais, que escolheram a fidelidade a Deus como caminho de reconciliação com a vida verdadeira. Contra essa força de morte que, desde o Éden, ronda a humanidade — não apenas como fim físico, mas como ruptura, desordem e autonegação — os santos se tornam sinais de resistência viva. E entre esses testemunhos, São Hermenegildo se ergue com especial eloquência: não apenas como mártir do século VI, mas como ícone de uma masculinidade restaurada, no modelo de São José, de uma paternidade espiritual madura e de uma existência oferecida como dom em defesa da verdade, da fé e, sobretudo, da família. Esta última, sem dúvida, a mais perseguida desde a entrada da morte na criação, pois, se pensarmos, a primeira família já foi o alvo da serpente ao gerar entre o casal a intriga. Em contrapartida, o exemplo de São Hermenegildo fala de forma direta aos jovens, especialmente àqueles que se preparam para formar novas famílias em meio à crise da masculinidade; ao mesmo tempo, sua história toca fundo nos lares já formados — justamente por serem um dos principais alvos da cultura de morte do mundo moderno — agindo como um perfume espiritual: silencioso, mas constante; invisível, mas profundamente transformador, contrapondo-se à cultura de morte que nos persegue desde o Éden.
Foi então que decidi me aprofundar mais em sua história, pesquisando na internet, e encontrei nele uma voz silenciosa de e resistência à morte — e, talvez por isso, ainda mais poderosa — que ressoa com espantosa atualidade. Sua existência não pode ser reduzida a uma simples nota histórica entre os mártires, pois há algo em sua trajetória que fala direto à alma: uma luta profundamente enraizada na fidelidade à verdade — e, por isso mesmo, uma luta pela própria vida e pela vida de sua família. Embora São Hermenegildo tenha perdido a vida terrena, ao fazê-lo ofereceu à Igreja um testemunho que atravessa os séculos: ele semeou a vida verdadeira, que continua a frutificar sobretudo nesses tempos marcados pela cultura de morte. Vida que se manifesta como inspiração, resistência e fidelidade àquilo que realmente salva; e essa fidelidade não era mero sentimentalismo: era, acima de tudo, movida pela graça — e, por isso, concreta, doutrinal e encarnada. Nesse contexto, São Hermenegildo combateu a heresia do arianismo que negava a divindade de Cristo, e, ao negar a divindade de Nosso Senhor, essa heresia negava a própria Vida, pois Jesus Cristo é a Vida, conforme Ele próprio em Jo 14,6. Enfim, seguir esse pensamento é como conduzir a si mesmo e a sociedade ao caos e à morte. Dessa forma, meditar no martírio de São Hermenegildo é, acima de tudo, meditar em um ato de resistência à cultura de morte já presente em sua época, uma cultura que, sob o disfarce da catolicismo, minava a verdade e, portanto, a própria vida.
Falando um pouco mais sobre o santo para contextualizar melhor este texto: Filho de Leovigildo, rei visigodo adepto do arianismo, Hermenegildo poderia ter seguido o caminho da estabilidade política e da obediência ao poder; no entanto, sua alma foi profundamente tocada pela fé católica, impulsionada também pela presença amorosa e fiel à verdade de sua esposa, Ingunda. Ainda jovem, ele foi nomeado pelo pai como governador da Bética, uma região importante do reino visigodo. Ali, começou a amadurecer espiritualmente e a aprofundar-se na doutrina católica e se tornava cada vez mais distante das crenças arianas da sua origem paterna e do reino. No entanto, sua conversão não permaneceu no âmbito privado pois se tornou pública, incômoda e, inevitavelmente, conflituosa em relação aos interesses políticos. Dessa forma, inevitavelmente, entrou em choque com o pai, a tradição de sua família e os interesses políticos do reino. O que começou como um ato interior de fé, logo se converteu em resistência política e religiosa. Por fim, foi traído por Leovigildo, que, ao o convocar para uma reconciliação, ele foi preso. Durante o cativeiro, ao pedir a Eucaristia, recebeu a visita de um bispo ariano enviado pelo pai como mais uma tentativa de fazer o filho negar a fé católica; e, ali na cela, ao recusar a comunhão das mãos de quem negava a divindade de Cristo, Hermenegildo fez mais que um protesto doutrinário: proclamou, com a própria vida, sua adesão ao Caminho, à Verdade e à Vida: “Prefiro perder tudo, até a minha vida, a compactuar com o que fere a verdade sobre Cristo.” Sua fidelidade lhe custou a vida mas gerou um testemunho eterno de defesa à vida na Eucarístia.
Contudo, talvez o gesto mais silencioso e, ao mesmo tempo, mais eloquente de São Hermenegildo tenha sido anterior a isso: ao perceber o perigo iminente, ele enviou sua esposa e seu filho para longe, sob os cuidados do imperador bizantino. Não por covardia, mas por amor, pois proteger, muitas vezes, é antes de tudo assegurar a segurança dos que amamos; e que um pai, mesmo à distância, cuida da fé dos seus ao lutar pela verdade — verdade que, mais uma vez se afirma, é a fonte da verdadeira vida. Nesse gesto, ele se aproxima da figura de São José, que fugiu com Santa Maria e o Menino Jesus — com a diferença de que Hermenegildo não foi junto, e fugiu para outro local, talvez para atrair sobre si toda a atenção e preservar assim a sua família.
Essa atitude heroica o aproxima também da grande tradição heroica da Antiguidade como Enéias, que, nas ruínas de Tróia, carregou o pai nos ombros e conduziu o filho pela mão. Da mesma forma, São Hermenegildo encarna o símbolo da fidelidade à tradição da Igreja, pois, assim como Enéias não fugiu para salvar a si mesmo, mas para garantir a sobrevivência da missão divina de Roma – Comunidade – e de seu filho e pai – família -, da mesma maneira São Hermenegildo, ao fugir e enviar a sua família para longe, age não por covardia, mas para proteger os seus e preservar a fé católica e a verdade da Eucaristia. Ambos são guiados por uma consciência espiritual que ultrapassa o presente imediato. A pietas romana, virtude que move Enéias a obedecer aos deuses, honrar os pais e proteger o filho, se reflete de modo cristão em Hermenegildo: nele, a fidelidade à verdade é inseparável do amor à família e à Igreja. Ele se torna, assim, um ícone da defesa da vida em dois níveis: da vida concreta de sua família e, sobretudo, da própria Vida que é Cristo, presente na Eucaristia, fonte de toda verdadeira vida.
Dessa forma, São Hermenegildo se torna um ícone da defesa da vida, da família e da integridade espiritual da verdade. Em outras palavras, um defensor da Vida em dois níveis: Da vida de sua família e, sobretudo, da própria Vida que é Cristo, presente na Eucaristia. Seu martírio, longe de ser apenas uma morte, foi, paradoxalmente, uma profissão de defesa da presença real da fonte verdadeira de Vida na Eucaristia. A expressão acima “paradoxalmente” faz sentido à luz fé — e os que vivem isso após a conversão o sabem bem —, pois Deus, como mostram os santos, muitas vezes age de modos que desafiam completamente a lógica humana. Cristo conduz suas almas por caminhos que parecem contrários à razão, mas são expressão de uma sabedoria divina que forma os seus na confiança, na obediência e na esperança.
Dessa forma, o testemunho de vida desse santo, em uma época de uma profunda crise silenciosa, que atinge os alicerces da identidade masculina cristã, se torna um farol para muitos homens que crescem sem referências de autoridade saudável, sem saber ao certo o que significa ser pai, ser esposo,enfim, ser exemplo para as futuras gerações. Entre o peso da responsabilidade e o medo de fracassar, muitos se calam, se retraem ou se perdem e é nesse contexto que São Hermenegildo encarna uma paternidade espiritual que não domina como déspota, mas serve; que não controla escrupulosamente, mas entrega; que não impõe, mas testemunha com docilidade e autoridade na mesma proporção, e, por isso, não abre mão do que é verdadeiro.Como exemplo, o gesto de proteger sua família por meio da fuga não é sinal de covardia, tampouco seria prova de coragem verdadeira permanecer ao lado deles colocando-os em risco. Pelo contrário, trata-se de um sinal de maturidade espiritual: a expressão da verdadeira coragem, que discerne quando lutar e quando recuar por amor, guiada pela prudência e pela fé. Sua autoridade masculina não nasce do poder, mas do amor ordenado por Cristo, nosso Senhor. Ele mostra que um homem maduro espiritualmente sabe a hora de lutar, mas também sabe a hora de silenciar e de confiar.
Na contemporaneidade, essa masculinidade redimida se torna urgente, pois os homens precisam reconciliar-se com sua vocação original: uma integração sob a vontade de Deus entre força e ternura, firmeza e escuta, liderança e humildade. Essa reconciliação, no entanto, só é possível por meio da cura das profundas feridas deixadas pela cultura de morte que assola nosso tempo — feridas que, lamentavelmente, dilaceram o tecido social e, por consequência, marcam o corpo, a alma e a identidade das pessoas. É como se tudo ao nosso redor exalasse a morte, refletindo-se nos discursos, nas escolhas, nas expressões culturais, e até mesmo na arte, que por séculos foi aliada íntima da verdade, pois estava a serviço do Belo e, portanto, do próprio Deus. Quando autêntica, a arte sempre foi mais do que estética; ela era um espaço sagrado de contemplação, refletindo o que é bom, belo e verdadeiro — um eco da criação divina. Por isso, não é de se espantar que a cultura de morte tenha voltado seus olhos para ela, tentando distorcê-la e corrompê-la com o grotesco, o mal e o falso, opostos à Beleza, ao Bem e ao Verdadeiro. A beleza, quando esvaziada da vida que a sustenta, se torna espetáculo da morte; mas, quando enraizada na vida, ela cura. É justamente aí que a missão dos homens, enquanto pais, se torna ainda mais urgente — não apenas como anunciadores de doutrinas sem a devida vivência na busca da santidade, mas como homens restaurados na masculinidade, no modelo de São José e São Hermenegildo. Homens que ensinam, pela prática, a confissão, a direção espiritual e a oração silenciosa: tudo isso se torna caminho de cura quando se torna exemplo de identidade para os filhos de hoje e das gerações do amanhã como um legado para o futuro. Em outras palavras, a reconstrução da paternidade defensora da vida — seja biológica ou espiritual — começa nesse ponto: Quando o homem, com fé e humildade, reconhece suas mazelas e as entrega a Deus, sua vida se renova, tornando-se testemunho da verdade e exalando um perfume discreto, mas perene — como o da Rosa das rosas, Santa Maria, rosa dos mártires, como São Hermenegildo.
Neste cenário, São Hermenegildo não é apenas uma lembrança distante de um mártir do passado, ele é um sinal atual de que o verdadeiro homem católico não é aquele que não sangra, mas aquele que, mesmo ferido, escolhe amar a Verdade até o fim — ainda que isso lhe custe tudo, inclusive a sua vida; seu martírio nos lembra que a beleza mais profunda nasce do amor fiel a Fonte da Vida, mesmo quando esse amor exige a cruz, a perda e a aparente derrota.
Por isso, mais do que nunca, na contemporaneidade, torna-se urgente resgatar essa masculinidade redimida, ou seja, os homens precisam reconciliar-se com sua vocação original dada por Deus e irrevogável: uma integração, sob a vontade de Deus, entre força e ternura, firmeza e escuta, liderança e humildade diante dos jovens— para que sejam, ambos, verdadeiros defensores da vida, em todas as suas etapas e dimensões. No entanto, essa reconciliação só se torna possível mediante a cura das feridas profundas deixadas pela cultura de morte mencionada neste texto que assola nosso tempo.
As famílias de hoje, frequentemente feridas, desestruturadas ou emocionalmente exaustas, precisam de figuras, como São Hermenegildo, que devolvam o sentido da presença masculina como referência espiritual e afetiva, e não como imposição autoritária; e os moços de nossa sociedade — muitos deles filhos da ausência, do excesso ou da confusão do mundo moderno — precisam mais do que regras sem a devida caridade: precisam de iniciação, testemunho de homens autênticos e presença real de uma comunidade católica. O ensino voltado a esses jovens deve ajudá-los a reconhecer e acolher suas feridas emocionais e espirituais; entender que a masculinidade cristã não é dureza, mas doação e sacrifício; redescobrir o valor da presença, da escuta sincera, da oração e da entrega; conectar a fé com corpo tão desvalido de significados nesses tempos, afetividade e missão de vida; e, sobretudo, encontrar na Eucaristia o centro de sua identidade cristã, assim como o filho viu em seu pai Hermenegildo; é preciso, portanto, propor São Hermenegildo não como um santo distante, mas como um irmão mais velho na fé. Um homem como eles, que enfrentou conflitos familiares, escolhas difíceis e uma cultura hostil à sua fé, mas que escolheu defender, com lucidez e coragem a única verdade geradora de vida pela Eucaristia. Seu exemplo mostra que o martírio hoje pode ser silencioso, mas não menos radical: morrer para si mesmo, perdoar mesmo ferido, silenciar mesmo incompreendido, permanecer mesmo sem reconhecimento.
Todo esse chamado à restauração do homem, sobretudo o jovem que agora adentra a maturidade — reflexão que me veio no dia de Santo Hermenegildo, coincidente com o Encontro Vocacional — encontra ressonância na Encíclica Mater et Magistra, a qual recorda a todos os católicos a urgência de uma presença transformadora no mundo: “A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que é membro” (n. 193). Por isso, defender a vida hoje é o mesmo que foi à época de São Hermenegildo ou do Papa João XXIII: é defender Cristo contra as forças que tentam negá-lo — seja sob a forma de heresias, de políticas desumanas, de tecnologias alienantes ou de mentalidades contrárias ao Evangelho, como também se repetiu durante o papado de Paulo VI.
Nesse mesmo espírito, a Encíclica Humanae Vitae desse papa convoca cada cristão a um testemunho semelhante ao de São Hermenegildo: sacrificial, contracultural e fiel à vida e à verdade, esse tipo de fidelidade nunca foi e nem nunca será isenta de sofrimento. No entanto, a dor do martírio, literal ou social como nos dias de hoje, é o solo fecundo onde brota o perfume da santidade. O perfume que atravessa os séculos e, ainda hoje, continua a formar homens íntegros, dispostos a se sacrificar por suas famílias — igualmente restauradas se inspirando nesse modelo de homem — e, com isso, produzindo comunidades enraizadas na verdade.
Nesse horizonte de testemunho e fidelidade, tanto de São Hermenegildo, quanto de São José quanto do herói grego Enéias, emerge com força o chamado à paternidade responsável como expressão concreta do amor conjugal cristão, que, em sua plenitude, manifesta sua verdadeira nobreza quando compreendido à luz de sua origem última: (…) me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome. — Efésios 3:14,15. É Cristo quem dá sentido a toda paternidade — termo que, longe de se restringir ao masculino, expressa a missão partilhada do homem e da mulher no seio da família. Dessa forma, a missão de transmitir a vida não pode ser exercida de modo autônomo e arbitrário. Os esposos devem alinhar suas escolhas à vontade criadora de Deus, inscrita na própria natureza do matrimônio. Por isso, São Hermenegildo é mais do que um mártir do passado: é um sinal para os nossos tempos, um modelo que desafia homens e mulheres a inspirarem os jovens e, por meio deles, a renovarem as futuras famílias e comunidades. Seu testemunho nos chama a viver com fidelidade profunda, com amor que se entrega, com uma fé encarnada que, mesmo em silêncio, transforma tudo ao redor. Que sua memória desperte em nós o desejo por uma vida ordenada pela verdade e que nos impulsione a sermos testemunhas da Vida que não passa: Cristo é essa Vida e, quando Ela nos encontra, — ser resgatado quando perdido marca o coração para sempre — ainda que o pecado nos ronde, o perfume desse encontro, vivido por São Hermenegildo, permanece gravado no coração, despertando em nós o desejo de buscar a fonte de onde brota esse aroma de rosas, a Rosa das rosas, a Santa Virgem Mãe de Cristo, que nos acolhe e nos conduz com ternura ao seu Filho, fonte da Vida que não passa.
PROFESSOR EDUARDO FARIA