Ninguém soube dizer quando aconteceu, só se percebeu depois, como quem nota, tarde demais, que o relógio parou, mas o tempo, indiferente, continuou a correr.
De repente, as pessoas ainda viam o mundo — as ruas, os prédios, os carros —, mas não viam mais ninguém. Foi um espanto coletivo.
O café da manhã ainda tinha pratos e xícaras, mas as mãos que os seguravam haviam sumido; as vozes ecoavam pela casa, mas não havia rostos para acompanhá-las.
Sabia-se que havia gente por perto — o som dos passos, o arrastar de uma cadeira, o fechar de uma porta —, mas ninguém podia ver ninguém. O mais intrigante era que os mortos continuavam visíveis. Cadáveres, animais abatidos, folhas secas no chão — tudo o que já não respirava permanecia diante dos olhos. O resto — tudo o que vivia — simplesmente desaparecera. O medo foi o primeiro a tomar conta de todos.
Como distinguir o invisível da ameaça? Uns atiravam para o nada; outros, desesperados, apedrejavam o ar, tentando acertar feras que só existiam na imaginação; mas, às vezes, o invisível caía — e, só então, o corpo surgia. Por vezes, era alguém. O horror, então, se instalou: para ver o outro, era preciso matá-lo. E foi assim que o homem começou a ver demais, e, demais, começou a matar para não ficar só, ainda que sem uma intenção consciente, pois sempre era sem intenção..
As ruas ficaram cheias de mortos visíveis e de vivos invisíveis.
A convivência se tornou impossível, uns se esconderam, isolados; outros, enlouquecidos, criaram companhias de defuntos, simulando conversas onde só havia silêncio.
O amor também desapareceu.
Quem ousaria tocar uma sombra sem saber se era alguém? O que era o outro?
O medo de ferir virou desculpa para nunca mais se aproximar.
As cidades não se esvaziaram de corpos, mas de gestos e de vida.
Os nascimentos se tornaram raros.
Diziam que ainda havia crianças, mas ninguém as via, apenas se sentiam leves movimentos, como se a vida insistisse em pulsar sob o manto da invisibilidade da morte..
“Não é nada”, diziam. “É só impressão.”
E, assim, o homem foi esquecendo o que era nascer, o que era a própria vida, pois as sombras prevaleciam sem distinção de calor ou frio gélido da morte.
Um pensador — desses quixotescos que escrevem mesmo quando ninguém mais lê — deixou uma frase rabiscada num muro em ruínas:
“O homem deixou de ver o homem quando começou a duvidar se a vida era vida, se um útero era templo máximo da vida.”
Ninguém compreendeu.
As palavras ficaram lá, gastas pelo tempo, até desaparecerem por completo.
E talvez fosse melhor assim — afinal, ninguém mais se lembrava do que era ver uma pessoa viva.
Nem mesmo os espelhos refletiam rostos.
Hoje, o mundo segue cheio de coisas, mas vazio de presenças.
E cada ser humano, cego do outro e de si mesmo, tornou-se o vulto que teme.
Até que, em meio ao silêncio, alguém percebeu o que todos ignoravam: uma pequena luz que piscava, de tempos em tempos.
Era frágil, quase invisível, mas iluminava tudo — a escuridão, os vultos, os corpos esquecidos.
Era a luz do instante da concepção, o lampejo do nascituro, da vida que já existia, mesmo sem ser vista.
E bastou um gesto simples: ver essa luz e escutar o som de seu cândido calor eloquente.
Reconhecê-la.
Estar presente diante dela.
Nada mais era necessário — apenas um olhar atento, uma escuta verdadeira, um instante de presença. E então, pouco a pouco, a vida começou a ser vista novamente.
Quem compreendeu esse milagre soube: o mundo podia ser refeito, e a humanidade, renascida.
Bastava aprender a olhar de novo — ver o que sempre esteve ali, mesmo quando ninguém mais acreditava.
Porque tudo o que existe começou assim:
nesse instante silencioso e luminoso em que a vida, tocada pelo primeiro sopro de amor que move todas as coisas, deseja ser vista novamente por Aquele que a amou desde o princípio.
O mesmo amor que, no mistério da criação, acendeu o primeiro homem — e que, desde então, nunca cessou de pulsar com a mesma força, a mesma ternura, a mesma intensidade sem medida.
Um amor que se renova, discreto e infinito, toda vez que dois seres humanos se abrem à dádiva de gerar vida — repetindo, ainda que em eco, o gesto divino de criar.
PRFESSOR EDUARDO FARIA