Na leitura do Evangelho de hoje, Mateus (8,5-11), o notório encontro entre Cristo e o centurião romano nos revela uma fé singular para época que, inclusive, surpreendeu Nosso Senhor. Esse oficial, um estrangeiro quanto à cultura judaica da época, reconhece a autoridade de Jesus a ponto de confiar no poder de sua palavra para realizar milagres à distância, este ponto merece uma atenção especial quanto ao ponto de vista da cultura de ambos os povos, romanos e judeus. Em outras palavras, essa postura contrasta profundamente com a maneira como muitos judeus da época compreendiam a relação entre a autoridade divina e sua representatividade física, conforme Flávio Josefo cita em seu Antiguidades Judaicas. Esse episódio não apenas ilustra um confronto entre diferentes cosmovisões culturais, mas também destaca como a abertura à fé transcende barreiras religiosas e culturais.
Antes de mais nada é preciso entender que a fé demonstrada pelo centurião está enraizada em sua experiência cultural como cidadão romano e, sobretudo, como oficial do exército, onde autoridade, hierarquia e pragmatismo eram valores fundamentais como podemos perceber no De Re Publica de Cícero, algo que, inclusive, vem a se tornar elementos precursores do funcionamento do Estado Moderno, como a Estrutura Jurídica e sua documentação que dispensava o poder presencial. Por isso, a sua compreensão da autoridade de Jesus reflete essas influências das seguintes maneiras abordadas a seguir.
Primeiramente, a Autoridade à Distância é um fato comum na vida militar romana, como uma autoridade militar, o centurião estava habituado a delegar ordens, e todas eram cumpridas mesmo sem sua presença direta. Esta práxis, citada nos Anais, Livro I, de Tácito, era própria do funcionamento da sociedade romana, notória por criar a documentação de tudo o que ocorria como forma de garantir as atividades militares por ordens à distância devido, principalmente, ao tamanho do Império. O soldado, por isso, sabia que sua palavra, respaldada por sua posição, tinha eficácia imediata. Essa visão hierárquica o levou a compreender que a autoridade de Jesus, sendo divina, era ainda mais absoluta, capaz de operar milagres sem necessidade de proximidade física.
Em segundo lugar, o pragmatismo da cultura romana privilegiava resultados concretos com eficiência e eficácia. Essa mentalidade prática permitiu que o centurião confiasse plenamente na palavra de Jesus, sem exigir sinais visíveis ou comprovações. Ele enxergava em Jesus uma autoridade superior, cujas ações estavam acima de qualquer questionamento, assim como ele já fazia com a autoridade acima da dele e de Tibério César, o seu imperador.
Em último lugar, não se pode esquecer de sua Fé e também do mínimo de uma bagagem cultural quanto aos costumes e leis judaicas. Isso possibilitou ao centurião abordar Jesus com simplicidade e humildade, pois, apesar de sua posição de poder, ele reconheceu sua indignidade por conhecer a cultura dos judeus ao tratar qualquer estrangeiro como impuro em relação ao sagrado: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa, mas dizei uma palavra e o meu servo será curado” (Mt 8,8).
Por outro lado, a cosmovisão judaica, profundamente enraizada na Lei, no Templo e na tradição, moldava uma compreensão diferente sobre a relação com a autoridade enviada por Deus segundo os pontos discutidos a seguir.
Primeiramente, quanto à Presença Física da Mediação Divina, ou seja, profetas, lugares e outras autoridades. Para explicar melhor, no judaísmo da época, a relação com Deus era frequentemente mediada por lugares como o Templo de Jerusalém, no caso de Cristo, o Segundo Templo; e por pessoas notórias, como profetas e sacerdotes. Milagres e outros portentos à distância, sem a presença física de um mediador, eram incomuns e desafiavam as expectativas religiosas da época. Os exemplos abundam nos textos bíblicos, mas, a título de ratificação, pode-se citar a presença de Moisés em todas as maravilhas enviadas por Deus, e, quando este se ausenta, o povo costumava se desviar da autoridade divina, como no caso do Bezerro de Ouro – Êxodo 32,1-4.
Em segundo lugar, geralmente a autoridade Divina estava vinculada à Tradição, ou seja, Ela estava relacionada aos termos do cumprimento da Lei de Moisés com a prática de certos rituais. Jesus, ao curar fora do contexto do Templo e desafiando estas normas estabelecidas e sagradas, provocava a oposição cultural e pragmática dos costumes religiosos.
Em último lugar, há o fato do Legalismo judaico e sua Busca por Evidências, como, por exemplo, quanto ao papel do messias prometido. A fim de explicar melhor, os líderes religiosos judeus, ao exigirem sinais da legitimidade de Jesus, estavam movidos por uma visão marcada pelo legalismo que justificava a necessidade da comprovação visível de seu papel como o Messias. Em algumas passagens podemos ver a reprovação de Cristo quanto a este comportamento, como em Mateus 12,38-40: Mestre, queremos ver um sinal feito por ti.’ Ele respondeu: ‘Uma geração má e adúltera pede um sinal! Nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal do profeta Jonas. Assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim também o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra.’ Os fariseus, totalmente apegados ao cumprimento literal e legalista dos sinais palpáveis para reconhecer o Messias, ignoravam outras maravilhas muito maiores e a própria palavra de Deus. No Velho Testamento também podemos encontrar fatos semelhantes como em Juízes 6,36-40 no relato de Gideão, escolhido por Deus para liderar Israel contra os midianitas; nesta narrativa, Gideão manifesta dúvidas sobre sua missão e, por isso, ele pede a Deus por sinais.
Em suma, o que torna a fé do centurião notável é sua perspectiva cultural e política. Enquanto os judeus vinculavam a autoridade divina a tradições e sinais concretos, o centurião reconhecia a universalidade e o poder absoluto da palavra de Jesus através de uma visão romana jurídica do poder. Mas, sobretudo, a sua humildade se destaca, pois, mesmo como oficial romano, com considerável poder e prestígio, ele se considerava indigno de receber Jesus em sua casa ao observar que era assim a perspectiva judaica de representatividade divina. Essa combinação de humildade e compreensão jurídica gerou sua fé que foi exaltada pelo próprio Cristo: “Em verdade vos digo, não encontrei ninguém em Israel com uma fé tão grande”. O episódio do centurião nos convida a refletir sobre a fé e as barreiras que as perspectivas cristalizadas podem impor às palavras de Deus em nosso coração. Essa narrativa nos desafia a refletir sobre nossas próprias barreiras, não pelos mesmos motivos aqui analisados, mas por outros, como o escrúpulo legalista que nos leva a medir nossas ações e as dos outros, ação estritamente ligada à forma, mas, como os Fariseus, esquecendo do conteúdo.
PROFESSOR EDUARDO FARIA