Novamente, ao estudar a Teologia do Corpo à luz de alguns dos verbetes hebraicos, foi possível explorar o entendimento do amor divino e conjugal a partir das palavras דּוֹד (dôd) e אַהֲבָה (ahavah), como são interpretadas na teologia cristã, especialmente na Teologia do Corpo de São João Paulo II. Essas expressões têm uma relevância singular no contexto bíblico, oferecendo nuances para a compreensão do amor esponsal enquanto reflexo do amor de Deus. A palavra דּוֹד (dôd), traduzida como “amado”, “tio” e, em outra forma, como דָּוִד (David), referindo-se ao Rei Davi., surge de forma significativa no Cântico dos Cânticos e em Isaías (Is 5:1), retratando este amor poderoso, característico da união íntima e espiritual entre Deus e Seu povo. Exemplos dessa profundidade de amor são perceptíveis nas passagens onde a Sulamita se refere ao seu amante como “meu amado”, ecoando a relação mística desejada entre Deus e Israel, e antecipando a relação entre Cristo e a Igreja. Isaías também evoca a figura do “amado” em seu cântico da vinha, ligando o amor ao sentimento exaltado que transparece em expressões como “melhor é o teu amor do que o vinho” (Ct 1:2) e “dar-te-ei ali o meu amor” (Ct 7:12).
No entanto, essa mesma palavra é corrompida em seu objetivo divino exposto no Cântico dos Cânticos, ou seja, a união sagrada do amado com a amada. Ezequiel, por exemplo, ao falar da bondade do Senhor com Israel, mas como isso muda ao mencionar: “[…] o teu tempo era tempo de amores דוד (dôd)” (Ez 16:8), mas os babilônios “vieram ter com ela para o leito dos amores דוד (dôd)” e a contaminaram (Ez 23:17). Essa corrupção se repete em Provérbios (Pv 7:18), onde a prostituta convida o jovem: “saciemo-nos de amores דוד (dôd) até pela manhã”. Esse uso desregrado da palavra ressalta a importância de compreender o amor dentro dos parâmetros divinos, inseridos na criação de forma intrínseca, como vários pensadores perceberam ao longo da história, como Santo Agostinho, ao enfatizar a dignidade do corpo humano e a sacralidade da união conjugal; São Tomás, ao demonstrar que o corpo não é um obstáculo, mas o princípio no qual o intelecto se une ao corpo como forma; a fenomenologia de Max Scheler, em sua obra A Situação do Homem no Cosmos, ao conceber o ser humano como uma unidade de corpo e espírito; São João da Cruz, ao explorar o sentido do amor esponsal entre Cristo e a Igreja, o corpo e a alma; e, por fim, São João Paulo II, ao sintetizar toda essa tradição sobre o amor humano vivido conforme Deus determinou.
No conjunto de seus ensinamentos, conhecido como a Teologia do Corpo, além dos paralelos com toda a tradição mencionada, é possível encontrar outros com o Cântico dos Cânticos, especialmente ao considerar o significado profundo dos termos hebraicos que descrevem o amor entre os amantes, visto como uma metáfora para o amor entre Deus e Israel (ou entre Cristo e a Igreja). O termo hebraico “דּוֹד” (dod) é um exemplo significativo, denotando um amor ardente e apaixonado, sugerindo um desejo de união e intimidade profunda. No século XX, Wojtyla explora como o amor conjugal, a partir da leitura de São João da Cruz sobre o Cântico dos Cânticos, reflete o amor divino, onde o desejo de união entre os esposos se alinha ao anseio de Deus por união com a humanidade, assim como o amado anseia pela amada que perambula, durante à noite, à procura Dele.
Além disso, outro termo importante é “אַהֲבָה” (ahavah), traduzido como “amor”, mas com uma conotação mais duradoura e comprometida, como em Cânticos 8:6, onde é descrito como “forte como a morte”. Típico das abstrações no hebraico, este substantivo feminino, “אַהֲבָה” (ahavah), descreve, conforme os exemplos da força deste termo, o amor esponsal do marido pela sua mulher, como no caso de Jacó por Raquel (Gn 29,20); o “amor” de Deus por seu povo (Dt 7:8; 2 Cr 2:11); e o amor de Jonas por Davi (1 Sm 18:3; 20:17). Além disso, este termo ocorre frequentemente na literatura sapiencial e, algumas vezes, nos profetas posteriores, Como se pode perceber nos Provérbios, ao surgir a palavra em sua forma mais abstrata: “o amor cobre todas as transgressões” (Pv 10:12) e “Melhor é a comida de hortaliça, onde há amor, do que o boi cevado e, com ele, o ódio” (Pv 15:17). Naturalmente, o termo também aparece nos Cantares, como já foi mencionado: “Seu estandarte sobre mim é o amor” (Ct 2:4); “Desfaleço de amor” (Ct 2:5; 5:8); “O amor é forte como a morte” (Ct 8:6); “As muitas águas não poderiam apagar o amor” (Ct 8:7).
Essa visão do amor duradouro e fiel reflete a relação de compromisso de Deus com o ser humano, um aspecto que ressoa na vida de Davi; já que as ocorrências do nome de Davi sugerem a etimologia de dôd, que significa “amado”, e, apesar de sua vida repleta de falhas, ele se destaca como um exemplo de amor e entrega a Deus, mais forte que a morte. A relação de Davi com o Senhor é marcada por uma profunda intimidade, refletindo a natureza do amor que é tanto humano quanto divino, ao ponto de sua dinastia chegar à família de Nazaré: “Do tronco de Jessé sairá um ramo, e das suas raízes, um renovo frutificará.” Nesse contexto, entende-se o papel de Santa Maria como este ramo que traria ao mundo o verdadeiro “Amado”, o “Esposo verdadeiro” do “Cântico”, interpretado por São João da Cruz. Ela é o renovo do tronco de Jessé, através do qual Deus cumpre sua promessa de um Messias. Em Nossa Senhora, o amor duradouro e fiel de Deus por seu povo, simbolizado em Davi, manifesta-se plenamente, tornando-a a porta do amor divino encarnado, amor mais forte que a morte e estendido do povo regido por Davi para a humanidade regida por Cristo, o Amado.
Esses conceitos de amor no hebraico bíblico revelam, dentro da Teologia do Corpo, que o amor humano e conjugal é chamado a espelhar a fidelidade e o zelo de Deus pelo seu povo ( Davi) e pela humanidade (Cristo). Assim como Santo Irineu de Lyon, ao responder aos gnósticos – defensores da ideia do espírito superior e oposto ao corpo – argumenta que Deus é misericordioso, pois, mesmo na desobediência dos homens, Ele estabeleceu com a humanidade várias profecias e as revelou quando o Verbo de Deus (o Amado Esposo) se fez carne (Jo 1,14). Essas revelações visam, sobretudo, trazer os gentios para a herança do mesmo corpo e da promessa em Cristo (Ef 3:6) e proclamar que esta carne “mortal será revestida de imortalidade” (1 Cor 15:54). Em outras palavras, pode-se afirmar o amor “אַהֲבָה” (ahavah) do Amado דוד (dôd) e seu casamento místico com a alma, conforme prefigurado no Cântico. Dessa forma, o Cântico de Salomão não se restringe a uma poesia romântica, mas atua como um ícone do amor divino pelos homens, a tal ponto que o Esposo Amado prometido já estava sendo preparado na genealogia do amado Davi.
O impacto da vida de Davi quanto a essa profecia, ao trazer a arca para Jerusalém e estabelecer a vida religiosa, ressalta esse desejo de união entre a alma e o Cristo. Através de seus salmos, Davi guia o povo com temas de fidelidade e obediência ao Senhor, sendo um precursor do amor esponsal (ágape, o amor do sacrifício que devora o Eros) que culminaria em Cristo. Um amor verdadeiro como o conceito grego de Eros, purificado pelas chamas do Amor Ágape, em contraste com a vida anterior de Santo Agostinho, descrita em suas Confissões. O Bispo, segundo suas confissões, em sua juventude se deleitava em amar e ser amado, mas não mantinha a pureza da amizade, misturando o amor sereno com o prazer sombrio, arrastando-se para os abismos do vício: “Afastava-me de Vós; espalhava-me em devassidões, e Vós em silêncio! Ó alegria tardia!”. Em contrapartida, o Doutor da Graça afirma que, quando os corpos proporcionam prazer, deve-se antes louvar a Deus neles e retornar o amor ao divino Artista que os criou, para não desagradá-Lo nas coisas que dão prazer. Da mesma forma, ao apreciar as almas, deve-se amá-las em Deus e fixar nelas esse amor, que em Deus encontra sua estabilidade. Esse amor e atitude equilibrada em relação ao corpo representam o matrimônio ideal, não apenas da alma, mas também do Amado com sua amada, refletindo a perfeita união desejada por Deus para os seres humanos.
Para finalizar, além do que já foi explorado sobre a relação etimológica entre ‘Amado’, ‘amor’ e Davi, destaca-se a importância simbólica do número 33, que representa a plenitude do casamento espiritual da alma com Cristo. Esse número conecta profundamente a vida de Davi ao ministério de Jesus, que completou sua obra redentora em Jerusalém. Davi, o “amado”, não apenas antecipa o Amado verdadeiro celebrado no Cântico dos Cânticos, mas também simboliza o corpo humano como um templo sagrado, refletindo a aliança eterna entre Deus e a humanidade. Ele foi o receptor ideal desta aliança que prometeu não apenas uma dinastia eterna, mas um Filho que seria também o “Filho de Deus”, o Cordeiro unido à noiva que se preparou para Ele, reinando eternamente no Reino de Deus Esse Amado, exaltado nos Cânticos e nas poesias místicas de São João da Cruz, revela-se como o objeto da busca da alma. “A alma que busca o Esposo, na noite da provação, encontra Nele o Amor verdadeiro que a eleva à contemplação”. As palavras hebraicas estudadas, como דּוֹד (dôd) e אַהֲבָה (ahavah), mostram que, desde os primeiros registros do Antigo Testamento, sempre existiu um convite divino para a união mística entre o ser humano e Deus. Na Teologia do Corpo, São João Paulo II, ao sintetizar todo esse conhecimento aqui ilustrado (e prenunciado já na língua hebraica), afirma que a sacralidade da união humana se revela também como uma busca pelo “Amado” e pelo casamento sagrado dos corpos e do espírito -juntos em uma só carne e um só coração. Em última análise, essa busca configura a busca pelo próprio Deus, plenamente manifestado em Cristo e na Igreja. O amor, portanto, é a chave para alcançar a verdadeira Vida Nova em Cristo.
PROFESSOR EDUARDO FARIA