Durante uma missa, fui tomado por uma meditação pouco habitual, mas, a meu ver, de grande relevância e raramente abordada de maneira ostensiva: o tema do sangue como topos literário e simbólico ao longo da história da humanidade. Este tópico se trata de uma realidade que atravessa épocas, culturas e sensibilidades com uma força inegável. Em outras palavras, desde os primórdios da civilização ocidental, o sangue derramado — em contextos diversos como guerras, sacrifícios pagãos, assassinatos, execuções públicas ou mesmo acidentes — jamais foi compreendido apenas como fluido vital. Ele se impôs, de modo persistente, como um símbolo carregado de significado, uma linguagem silenciosa e visceral que fala diretamente à regiões mais profundas do ser humano. Em certo sentido, o sangue tem mais voz que as palavras, na própria Escritura, já no Gênesis, nos deparamos com esse peso simbólico: o sangue de Abel, derramado injustamente, clama da terra por justiça. Aqui já se revela um dos primeiros arquétipos simbólicos do sangue: ele não apenas registra a morte, mas exige sentido, reparação e memória. O sangue que clama da terra inaugura uma gramática da justiça inscrita na carne ferida e no solo manchado. No entanto, a resposta da humanidade caída pelo pecado a esse clamor por justiça nem sempre seguiu o caminho da reconciliação com Deus e com a natureza manchada pelo sangue. Pelo contrário, não raramente respondeu com novas formas de derramamento: rituais sangrentos, sacrifícios humanos, combates de gladiadores, execuções públicas — transformando o sangue de símbolo sagrado de clamor por reconciliação com Deus e justiça em espetáculo de catarse. Assim, o que era um sinal de dor e dignidade foi, em muitos contextos históricos, estetizado ou trivializado, sendo explorado para alimentar o prazer sádico, a catarse coletiva ou a reafirmação de poder.
A fim de melhor ilustrar isso, Freud, em Totem e Tabu, apontava para o crime primordial de um pai assassinado pelos filhos: a origem da culpa coletiva e da sublimação ritual do desejo de violência. Na repetição simbólica deste crime, na ritualização, estaria o nascimento das primeiras religiões pagãs. Freud via nessa encenação o modo como a sociedade domava o instinto de morte (Thanatos) o canalizando para o sagrado. O sangue derramado, agora teatralizado — real ou figurado — é então a marca da expiação da culpa em ritos. No mundo romano, os jogos do Coliseu representavam essa continuidade da necessidade de catarse pública (Agostinho trata desse tema em suas confissões), lá no centro da arena, homens e feras derramavam sangue diante de um povo entorpecido por vinho e crueldade nesse sistema de catarse. O imperador, símbolo do poder absoluto, assistia ao espetáculo como pontifex maximus, o sumo mediador da ordem; e até havia algo sagrado — embora corrompido — nesse cenário: uma encenação do caos que deveria ser vencido pela ordem estatal. No entanto, uma pergunta permanece, por que o prazer? Por que o delírio coletivo diante da morte alheia? René Girard — um renomado professor de literatura comparada francês — nos oferece uma possível chave.
Em A Violência e o Sagrado, René Girard afirma que a violência é fundadora da cultura, uma vez que toda sociedade surge a partir da mimetização do desejo: o ser humano deseja aquilo que o outro deseja. Embora essa tese seja fecunda para a compreensão dos mecanismos sociais e dos ciclos de violência, ela se mostra limitada do ponto de vista ontológico e teológico. Ao considerar a realidade humana à luz da Queda — pela qual nos tornamos, segundo as palavras de Cristo, uma “raça de víboras” —, compreende-se que a afirmação de Girard adquire um fundo de verdade, ainda que sua formulação careça de uma fundamentação mais profunda nas categorias do pecado original e da corrupção da vontade. Assim, a violência enquanto princípio estruturante da cultura se revela compatível com uma antropologia decaída, mas não exaure a complexidade do ser humano criado à imagem de Deus e ferido pelo pecado. Seguindo este princípio prometeico —termo derivado do mito de Prometeu —, o conflito se tornou inevitável.
Contudo, para que o conflito mimético não destrua os laços comunitários, entra em cena um dispositivo tão antigo quanto recorrente: o mecanismo do bode expiatório. Diante de uma tensão social insustentável, a coletividade elege uma vítima — culpada ou não — sobre a qual recai toda a carga simbólica das desordens, violências e culpas acumuladas. A eliminação dessa vítima gera um efeito de purificação coletiva: seu sacrifício restaura provisoriamente a ordem e a coesão do grupo, assumindo um caráter sagrado. O sangue derramado, paradoxalmente, une os que permanecem. O alívio que se segue é interpretado como um sinal da aprovação divina, e, com o tempo, esse gesto se cristaliza em rito, dando origem à religião. Nesse sentido, Girard afirma de modo incisivo: “O sagrado nasce da violência contida e da violência exercida” (Violência e o Sagrado). Esse funcionamento mítico encontra eco direto no rito do bode emissário descrito em Levítico 16, elemento central da celebração do Yom Kipur, o Dia da Expiação. Nesse ritual, dois bodes são escolhidos: um é sacrificado no altar do templo, enquanto o outro, carregando simbolicamente os pecados da nação de Israel, é vestido com um manto escarlate, conduzido para fora dos limites da cidade e abandonado no deserto. Ainda que inocente, esse animal se torna portador do mal coletivo, numa operação simbólica de transferência do pecado. Sua exclusão do convívio social representa, simultaneamente, expiação diante de Deus e restauração do tecido comunitário.
Girard, no entanto, adverte para uma exigência essencial ao funcionamento desse mecanismo: ele, necessariamente, precisa permanecer velado; isso porque a eficácia do rito depende de sua opacidade — a sociedade não pode reconhecer conscientemente que está projetando suas culpas sobre um inocente. A violência, portanto, deve parecer legítima, a vítima, indubitavelmente culpada; e, caso a inocência venha à tona, o feitiço se rompe e o ciclo sacrificial se torna inviabilizado. É precisamente nesse ponto que a figura de Cristo se inscreve de maneira singular na história, pois Ele se oferece voluntariamente como bode expiatório, sendo conduzido para fora dos muros de Jerusalém conforme está em Hb 13,12: “E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta”, coberto de escárnio e executado como maldito, embora plenamente inocente. Contudo, diferente dos rituais antigos e das lutas sanguinárias dos coliseus, a sua inocência não é ocultada, mas revelada. A cruz, que antes simbolizava a violência e o derramamento de sangue — legitimados e ao mesmo tempo ocultos a respeito da projeção da culpa sobre a vítima — torna-se o palco onde se desmascara toda a lógica sacrificial; é ali que ressoa a palavra que rompe com o ciclo de violência: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Em Jesus, o único verdadeiramente inocente, o mecanismo é exposto em sua farsa. Desse modo, Cristo não apenas participa do paradigma do bode expiatório: Ele o supera e o redime, pois Sua morte inaugura uma nova lógica de reconciliação, que não se fundamenta mais na exclusão nem na violência, mas no amor que se entrega e na verdade que se revela. O véu do templo se rasga, o sacrifício é consumado, e a religião alicerçada na violência dá lugar à fé no Cordeiro que tira o pecado do mundo (Jo 1,29). Este sacrifício — o Cordeiro que, no Antigo Testamento, era apenas prefigurado — encontra, enfim, sua plena realização em Cristo. Na cruz, Cristo denuncia o teatro da morte, pois, sendo o Inocente absoluto, entrega-se de forma pública, visível e — mais importante ainda — interpretada, rompendo com o silêncio que marcava os antigos sacrifícios: pela primeira vez, é a própria vítima quem toma a palavra. Ao fazê-lo, revela a verdade antes encoberta: já não há necessidade de sangue, já não se exige que poucos derramem suas vidas para apaziguar a culpa indelével que habita o coração humano. Seu sacrifício, único e perfeito, substitui todos os demais — desde os holocaustos prescritos pela antiga aliança até os rituais sangrentos de culturas que, inconscientemente, buscavam mitigar o peso da existência ferida. Nesse gesto definitivo, o véu se rasga, a ilusão do sacrifício é desmascarada, e a lógica da violência religiosa é confrontada pela palavra do próprio Deus: “Quero misericórdia, e não sacrifício.” conforme as duas passagens: (Os 6,6; Mt 9,13).
A fim de ratificar o exposto até o momento, na Suma Teológica, Santo Tomás de Aquino interpreta a Paixão como um sacrifício racional, um ato de amor e obediência que tem valor infinito porque é oferecido por uma pessoa divina: “O sacrifício de Cristo é eficaz porque é oferecido com amor perfeito e obediente.” (S.Th., III, q.48, a.2). A Eucaristia, memorial da cruz, não repete a violência: a transubstanciação não é nova morte, mas atualização do dom. O sangue que antes clamava por justiça (como o de Abel), agora clama por misericórdia, conforme Hb 12,24: “²⁴ E a Jesus, o Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel”, dessa forma, a antropologia do sangue é transformada.
Em contrapartida, embora o cristianismo tenha revelado o erro e a injustiça do mecanismo sacrificial, o gosto humano pelo sangue continua a manifestar-se, pois o pecado ainda habita o coração do homem; se, por um lado, o sacrifício de Cristo apagou o pecado original e abriu as portas da reconciliação, por outro, os pecados pessoais de cada um exigem uma resposta livre e consciente ao chamado do Amor, que convida, mas não impõe, a purificação interior. Sendo assim, a condição humana, devido à sua natureza caída, mesmo após a consolidação da revelação cristã, continuou a manifestar, sob novas formas, seu desejo latente por sangue e expiação. No contexto da modernidade europeia, — aliada ao protestantismo sufocante quanto aos impulsos —, esse anseio encontrou expressão e vazão nas execuções públicas, que ressurgiram com notável vigor, convertendo-se em verdadeiros espetáculos de massa. A guilhotina — ícone da racionalidade iluminista — foi estrategicamente posicionada no centro das cidades, assumindo o papel de símbolo de uma justiça que se dizia racional e imparcial. Contudo, paradoxalmente, esse aparato operava como um palco da morte, atraindo multidões que, acompanhadas de suas famílias e rodeadas por comerciantes ambulantes, assistiam às decapitações como se se tratassem de manifestações públicas de entretenimento.Nesse cenário, o derramamento de sangue assumia uma função catártica, atuando como válvula de escape para as tensões internas de uma coletividade mergulhada nos rigorosos escrúpulos do puritanismo protestante. Nesse contexto, a violência deixava de ser dirigida contra o próprio indivíduo em forma de autopunição para ser externalizada e ressignificada socialmente, de modo a ser controlada, higienizada e legitimada segundo os preceitos morais e disciplinares próprios do protestantismo. A morte, entendida não apenas como o fim biológico, mas como uma ruptura simbólica e uma passagem transcendental, era transformada em um ritual de descarga psíquica coletiva, no qual a dor íntima encontrava expressão concreta e pública. Dessa forma, a autopunição era sublimada na lógica do sacrifício, de modo que o sangue derramado deixava de ser simplesmente um sinal de culpa para operar como um instrumento simbólico de purificação moral e social. A catarse, por sua vez, não consistia na aniquilação do eu, mas na liberação da tensão psíquica por meio de um gesto extremo que projetava o sofrimento para além dos limites do sujeito, funcionando como um mecanismo de expiação coletiva. Essa dinâmica remete com força aos princípios da tragédia grega clássica, na qual sofrimento e morte não só serviam à expiação da culpa, mas, sobretudo, ajudaram a restaurar uma ordem simbólica superior, um sistema capaz de conferir sentido e coerência ao caos do conflito tanto individual quanto coletivo.
Paralelamente, a consolidação do Estado Moderno reforçou seu domínio sobre o corpo social, transformando o sangue num instrumento de controle e disciplina, e não mais de purificação espiritual. Os suplícios públicos tornaram-se meticulosos, quase litúrgicos em sua execução, porém desprovidos de qualquer transcendência, convertendo o corpo humano em mero objeto de cálculo e dominação. Tal racionalização da violência antecipava os sistemas de controle massivo e a brutalidade organizada dos campos de concentração, onde o corpo e a vida eram geridos e subjugados pelo poder soberano em nome da ordem e da segurança.
Para finalizar, esses espetáculos são ecos esvaziados de uma liturgia, versões grotescas do sacrifício; o catolicismo mostrou que a verdadeira expiação é invisível, feita no íntimo da alma unida a Deus. Cristo encerra a era dos sacrifícios sangrentos, pois, ao dizer “Este é o meu sangue”, ele não oferece sangue de terceiros; Ele não convoca multidões para verem a morte do outro; Ele dá o próprio sangue, e o oferece como bebida da reconciliação. Santo Agostinho vê na cruz a inversão de toda lógica da violência: “A cruz de Cristo é o tribunal onde o mundo é julgado e o amor vence.” A partir da cruz, o sangue já não é mais sinal de fúria divina, mas sinal de aliança; a Eucaristia é o anti-espetáculo, pois ninguém morre ali diante dos olhos do povo; ao contrário, no silêncio da missa, o pão e o vinho se tornam Corpo e Sangue. Deus se oferece sem espetáculo, sem violência visível, e o que se vê é mínimo, mas o que se recebe é infinito.
No entanto, o mundo moderno, ao se afastar do sagrado, caiu em uma versão secularizada do culto ao sangue. Filmes, séries, jogos, crimes televisionados — tudo substitui o velho ritual. O desejo de ver o outro morrer para alcançar uma catarse da culpa e dos impulsos autodestrutivos persiste, porém sem o verdadeiro sentido de expiação que Cristo oferece gratuitamente. Sem a presença Dele, esse impulso se reduz a um puro gozo sádico, uma repetição vazia do sofrimento alheio que se manifesta como um teatro de horrores da catarse temporária da culpa. Essa culpa, contudo, permanece superficial e incapaz de promover transformação profunda, pois somente o sacrifício verdadeiro, realizado por Cristo, pode gerar uma catarse genuína e definitiva, conduzindo a uma paz absoluta e inabalável. Em suma, com Cristo, o sangue derramado adquire um novo significado: Ele não clama por vingança, mas por perdão; não seduz pela violência, mas convida ao amor. Como escreveu o professor de literatura comparada Girard citado no início desse texto: “A cruz impede a repetição da violência sacrificial, não porque repete um assassinato, mas porque revela sua mentira.” (Eu via Satanás cair como um Relâmpago: Lucas 10:18). Sangue Redentor, Cristo não pede sangue de ninguém. Ele oferece o seu, a cruz não é palco, é altar, O Coliseu está vazio. A Eucaristia permanece.
PROFESSOR EDUARDO FARIA