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Do Caos à Vida: O Mistério das Águas e do Ventre em Santa Maria

28 de agosto de 2025

Recentemente, deparei-me com uma frase atribuída a Christopher West proferida no último congresso sobre Teologia do Corpo em São Paulo. Nela, West evocava a imagem do retorno ao ventre de Nossa Senhora como morada do paraíso — lugar das águas de onde brota a vida. Esse simbolismo, do qual particularmente gosto muito, encontra ressonância direta e imediata em Gênesis 1,2 segundo, sobretudo, a alguns nomes importantes da Igreja como Santo Ambrósio de Milão, São João Damasceno, São Basílio Magno entre outros tantos nomes que deram continuidade a essa interpretação supracitada e próxima a dizer: “A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.” Esse trecho do Gênesis cria um paralelo simbólico riquíssimo com o Evangelho de São Lucas. No primeiro, o Espírito paira sobre as águas inaugurando a criação; no segundo, o Espírito Santo cobre Maria — verbo que compartilha o mesmo campo semântico da ideia de “pairar” — e dela nasce o Deus-Menino, princípio da nova criação. Não é por acaso, embora tudo esteja inscrito no plano maior e misterioso de Deus, que o próprio nome de Maria em hebraico (מִרְיָם – Miryām) se relacione etimologicamente à ideia de “águas/mar”. Esse dado intensifica ainda mais a correspondência simbólica: Maria como as águas fecundadas e ordenadas pelo Espírito, enquanto o abismo de Gênesis representa as águas caóticas transformadas pela ação divina. Essa leitura, que une Escritura e simbolismo, ecoa em diversas interpretações acadêmicas, como veremos a seguir.

Entre os pesquisadores que exploraram essa dimensão, destacam-se James George Frazer, que associa Maria a arquétipos de maternidade e divindades femininas; Wilhelm Bousset, em seus estudos sobre paralelos entre o culto a Cristo e ritos pagãos, com atenção especial à veneração do feminino e sua força geradora; Mircea Eliade, ao salientar os arquétipos universais ligados à maternidade, sobretudo os símbolos da terra, da água e do útero cósmico como origem de tudo; e, por fim, Stephen Benko, que, de forma mais controversa, propôs relações arquetípicas entre antigas deusas e Nossa Senhora no campo da fenomenologia e do simbolismo religioso.

Para ilustrar essa herança simbólica, Benko recorre à Mulher grávida de Apocalipse 12 — imagem também evocada, ao que tudo indica, por Christopher West em suas conferências. Em The Virgin Goddess, ao comentar a visão da mulher vestida de sol, coroada de estrelas, com a lua sob os pés, carregando um menino e perseguida por um Dragão que lança atrás dela um rio de água, Benko observa que essa representação pode ser compreendida à luz de antigas imagens femininas cósmicas do mundo greco-romano e do Oriente. Entre os paralelos mais significativos, ele menciona:

  1. Ísis (Egito/Império Romano): Rainha dos Céus, associada ao sol e à lua, amplamente difundida na iconografia romana. Considerada matriz de certos elementos do imaginário popular em torno da Virgem Maria, aparece em mitos onde protege o filho Hórus contra Set, frequentemente representado como serpente ou dragão, ecoando a Mulher do Apocalipse que guarda o Filho destinado a vencer o mal.
  2. Leto (Grécia): mãe de Apolo e Ártemis, perseguida por Hera, encontra refúgio junto às águas da ilha de Delos para dar à luz. Seu filho Apolo, destinado a derrotar a serpente Píton, remete ao motivo da mãe perseguida que gera o vencedor do Dragão.
  3. Ishtar/Astarte (Oriente Médio): Rainha dos Céus, associada às estrelas e ao poder cósmico, já conhecida da tradição bíblica como oposição à fé israelita. Sua genealogia remete a Tiamat, a deusa-dragão vencida por Marduk, reforçando a tensão entre a mulher celeste e o monstro cósmico.
  4. Tiamat (Mesopotâmia): deusa primordial das águas salgadas, ligada ao caos e ao útero cósmico, fonte da vida e dos monstros. Sua relação com as águas encontra eco na cena apocalíptica em que a Mulher é perseguida pelo rio lançado pelo Dragão.

Segundo Benko, o cristianismo não absorveu simplesmente essas imagens, mas as ressignificou em chave própria. A Mulher do Apocalipse, identificada com Maria grávida do Deus-Menino, assume não apenas uma dimensão cósmica partilhada universalmente, mas também uma dimensão coletiva, representando Israel e a Igreja. Nesse processo, símbolos do feminino pagão foram reinterpretados à luz do mistério da Encarnação e da Redenção, sob a ação do Espírito Santo.

O caso de Tiamat é particularmente revelador. No Enuma Elish, a deusa primordial do abismo das águas é vencida por Marduk, que divide seu corpo em duas partes, formando o céu e a terra. Essa narrativa contrasta com a criação bíblica, onde Deus ordena as águas do caos sem violência, apenas pela Palavra e pelo Espírito.Tanto no Gênesis, com o relato do abismo primordial, quanto no mito de Tiamat, em que seu corpo morto é dividido nas águas sobre o firmamento — as águas do céu — e nas águas debaixo do firmamento — os oceanos em torno da porção de terra: a coluna de Tiamat —, encontramos a mesma imagem das águas caóticas. Em ambos os casos, quando essas águas são submetidas ao poder divino, deixam de ser ameaça e se tornam fonte de vida. À luz dessa leitura, o Dragão de Apocalipse 12 pode ser visto como atualização da figura do caos primordial em oposição à vida, enquanto Maria representa as águas ordenadas por Deus, de onde brota a nova criação.

Em síntese, Ísis, Tiamat, Leto e Ishtar/Astarte, todas associadas ao arquétipo da “rainha celeste” e a confrontos com serpentes ou monstros aquáticos, ofereceram um pano de fundo simbólico que foi reelaborado pelo cristianismo nascente. O Dragão que cospe água em Apocalipse pode, assim, ser interpretado como atualização de um motivo mítico universal: o embate entre ordem (a água que gera vida) e caos (a água que destrói), entre a mãe protetora e o dragão devorador.

De uma perspectiva acadêmica, esse quadro revela uma profunda reelaboração cultural e teológica, que toca também o campo dos estudos literários. Já numa leitura confessional, essas tradições podem ser vistas como preparação providencial para a vinda de Maria. Nesse horizonte, a Virgem não surge como mera substituta de antigas divindades, mas como plenitude do arquétipo maternal e cósmico — não como deusa, mas como mulher histórica que trouxe em si o Filho de Deus. Por isso, não é adorada como divindade, mas venerada como Rainha dos Céus, coroada não pelo mito, mas por sua participação única na história da salvação.

 

PROFESSOR EDUARDO FARIA