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A Jornada do Autoperdão na perspectiva da Teologia do Corpo: Integrando Graça, Cura e Conversão Interior

1 de abril de 2025

Nos últimos tempos, ao observar a mim mesmo, meus queridos alunos, colegas de trabalho e familiares, tenho refletido bastante sobre a dança entre culpa e arrependimento, sendo este último mais um remorso do que uma verdadeira contrição. Essa valsa implacável, ritmada por este sentimento, mantém o ser humano preso ao passado, incapaz de integrar a experiência do erro à jornada de amadurecimento. Contudo, por mais contraditório que pareça, isso também acompanha a busca pela reconciliação interior, moldando o anseio pela integração de um ser fragmentado e pela paz, principalmente na reconciliação com Deus. Esse retorno para se viver em Cristo é a pedra angular que favorece uma transformação profunda do corpo, mente e espírito, em outras palavras, o remorso se transforma em um arrependimento autêntico, capaz de promover uma reconciliação interior.

No entanto, esse processo se torna complexo devido, muitas vezes, ao passado marcado pelos erros, falhas e até mesmo traumas, portanto, isso pode se transformar em um fardo difícil de carregar e de abandonar, mesmo quando há plena consciência do perdão divino. A reconciliação autêntica exige mais do que a simples compreensão intelectual do perdão; ela requer uma integração real das dimensões espiritual, emocional e física. Só assim a graça pode tocar todas as feridas e ordenar o homem em sua totalidade. A dificuldade em aceitar o perdão e se libertar do peso do passado surge porque o pecado e os traumas deixam marcas não apenas na alma, mas também na memória, nas emoções e até no corpo, dificultando a vivência plena da liberdade dos filhos de Deus. Portanto, essa reconciliação exige mais do que a compreensão teórica do perdão divino, da economia da salvação ou da vida dos santos. Embora essas práticas sejam valiosas, se não forem vividas de forma profunda, além da mente, atingindo as partes inconscientes do ser, esse conhecimento será como o ” metal que soa ou como o sino que retine” mencionado por São Paulo – 1 Coríntios 13. Viver isso em todos os aspectos do ser é viver a Cáritas — a humildade de se observar em seu íntimo e aplicar esse conhecimento na prática. Após conhecer, é necessário reconhecer que não é possível lidar sozinho com esse emaranhado de sentimentos esquecidos, como um novelo de linhas em uma caixa de costura. E então, coloca-se tudo nas mãos de Deus, pois somente Ele poderá desatar esse emaranhado e unificar o ser.

Outro obstáculo que dificulta a jornada de reconciliação é o medo persistente de pecar novamente, gerando um ciclo de autocrítica e autopunição. Esse medo, embora venha de um desejo legítimo de evitar o erro, pode se tornar um peso emocional que atrapalha o progresso na santidade. Mas por que esse processo é tão desafiador? A resposta pode estar na forma como cada aspecto do nosso ser lida com a culpa e a aceitação do perdão. Quando não se vive plenamente a aceitação do perdão, as dimensões do ser continuam a carregar as marcas da culpa, alimentando o ciclo de autossabotagem e dificultando o caminho para a verdadeira libertação. Vale reiterar que o caminho para a santidade não se constrói com base no medo de errar, seria como o homem que construiu sua casa na areia, pelo contrário, este caminho deve ser baseado na confiança em Cristo, pois somente Ele que redime e integra todas as dimensões do nosso ser. A Teologia do Corpo de São João Paulo II nos recorda que a redenção alcança não apenas o espírito, mas a totalidade da pessoa, chamada a viver em harmonia consigo mesma, com os outros e com Deus. Somente na experiência dessa unidade restaurada o homem encontra a verdadeira paz. Esse processo de conversão envolve integrar a graça do perdão em todos os aspectos do ser: espiritual, emocional e físico. Embora Deus ofereça o perdão gratuitamente, uma forte resistência humana a aceitá-lo pode ser vista na dificuldade de internalizar essa graça de forma plena. Esse bloqueio ocorre, sobretudo, porque o coração, marcado por experiências dolorosas do passado, cria uma cisão interna implacável entre sentimentos, razão e vontade. Dessa forma, estas memórias se repetem, conscientemente ou não, influenciando padrões de comportamento que limitam a vivência plena da própria identidade, das relações com o outro e, principalmente, com Deus. Por conseguinte, quando essas feridas não são reconhecidas e ressignificadas, transformam-se em barreiras que afastam a pessoa de si mesma, dos outros e de Deus, dificultando a experiência real do livre arbítrio e, por isso, da busca pelo encontro com Cristo dentro de si. Nesse sentido, a verdadeira cura acontece quando essa dor é integrada à vida, esse processo deve acontecer com espírito humilde para ter verdadeiros olhos para reconhecer toda essa realidade. E, a partir disso, se deve entregar a Deus essas memórias, permitindo que o passado não mais aprisione, mas contribua para o crescimento. Da mesma forma que alguém, ao invés de ficar revivendo constantemente gravações antigas de um ente querido falecido — culpando a Deus ou o destino —, aprende a acolher humildemente a verdade dessa ausência sem permitir que ela defina seu presente, o afastando das relações com os outros, consigo mesmo e com Deus em um processo de retroalimentação das feridas como um ciclo de mágoa, culpa e punição. Pelo contrário, a pessoa é chamada a viver a Cáritas de Cristo em seu coração, amando até mesmo esse passado como parte de seu ser que também o definiu, por mais terrível que tenha sido, afinal, de todo mal, Deus sempre tira um bem maior, esse processo de cura interior é um exemplo ótimo.

Diante disso, é importante frisar uma conclusão razoável, a de que cada um de nós é convidado a organizar esse espaço da mente e do corpo, somente assim, quando essa verdade e esse amor (Cáritas) se tornam guias do processo, as feridas deixam de ser limitações e se transformam em maturidade e desenvolvimento. Assim como nos ensina o salmista, “Cria em mim um coração puro, e renova em mim um espírito reto” (Salmo 51,10), é necessário permitir que a graça de Deus te auxilie a iluminar e, com isso, renovar todas as partes do ser profundas e feridas que impedem o ser humano de alcançar a pureza. E essa renovação só ocorre quando o perdão não é apenas um movimento de Deus através da declaração do sacerdote, ma, sobretudo, deve ser uma realidade vivida e experienciada em todos os níveis da pessoa. Como São Paulo nos lembra em Romanos 8,1: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” No entanto, esse processo de transformação, em muitos casos, é caracterizado por períodos de luta interior, mas é na perseverança e entrega que a Graça de Deus atua, iluminando o nosso espírito e, assim nos auxiliando a integrar as partes do nosso ser. Consequentemente, isso nos leva a encontrar a Cristo em nosso espírito: “Das trevas resplandecerá a luz, Ele mesmo brilhou em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo –  2 Coríntios 4,6.” É nesse caminho que a pessoa se torna uma nova criatura em Cristo, redimida pela força da graça divina. O perdão de Deus não é apenas uma absolvição, mas uma restauração completa do ser, no entanto, diante da dificuldade de perdoar a si mesmo, enraizada em uma identidade ferida e marcada por remorso, a vivência plena do perdão é dificultada se tornando superficial. 

Todo esse processo possui similaridades com a  “Noite Escura da Alma” de São João da Cruz, o qual demonstra como a alma, mesmo iluminada pela graça, enfrenta uma luta interior que a impede de experimentar plenamente o amor de Deus. O santo afirma que a pessoa ao perceber suas imperfeições se zanga consigo mesma, e, com isso, parece desejar a santidade imediata, levando à frustração e impaciência. Essa impaciência espiritual só pode ser remediada pela purificação da noite escura, que prepara a alma para uma verdadeira união com Deus. Em suma, para São João da Cruz, a entrega profunda e a humilde paciência são essenciais para superar esse escrúpulo inquieto e alcançar a verdadeira mansidão espiritual, condição necessária para o encontro com Cristo na alma.

Essa purificação e transformação espiritual também se aplicam ao processo de integração pessoal, onde todas as dimensões do ser — a emocional, a espiritual e a psicológica — precisam ser alinhadas e integradas em um só corpo. Esse caminho de reconciliação exige um trabalho contínuo de reconhecimento e cura das partes fragmentadas do ser. Ele descreve o comportamento do fiel que se zanga consigo mesmo pela imperfeição, demonstrando impaciência, como se quisesse ser santo em um único dia. Mas a verdadeira mudança vem pela purificação vivida na noite escura. Em outras palavras, o perdão e a cura interior não acontecem de forma abrupta – como que na velocidade da urgência de um adolescente -, mas por meio desse processo de autoconhecimento e aceitação citados anteriormente, que não se limita a uma mera compreensão intelectual da graça de Deus, mas a toda uma vivência profunda dela, somente assim o autoperdão poderá ser integrado em todos os níveis do ser.

A partir disso, retomando a reflexão de São João da Cruz, é importante destacar que, apesar da consciência do perdão de Deus, muitos continuam a reviver suas falhas, prisioneiros de lembranças persistentes, um processo muitas vezes inconsciente. O conflito interno descrito por São Paulo em Romanos 7,19: “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, isso faço”, reflete essa prisão emocional. Para superar isso, é necessário um novo olhar sobre o passado. O autoperdão não significa ignorar os erros, mas enxergá-los à luz da misericórdia, permitindo que Deus transforme nossas fraquezas em instrumentos de graça. A filosofia de Sêneca também nos ensina que muitas vezes nos atormentamos mais pela imaginação do que pela realidade dos fatos. Ele afirma: “Mais numerosos são os nossos temores que as nossas verdadeiras aflições”, e, como ele diz, “tudo o que nos suscita murmúrios não tem a mínima importância e só merece desprezo.” Essa perspectiva sugere que o sofrimento que carregamos muitas vezes não vem da culpa real, mas do peso emocional que atribuímos a ela, alimentado por um ciclo de culpa e remorso que perpetuamos. Essa visão estóica, alinhada com o modelo proposto por Cristo, nos convida à liberdade interior, à compreensão de que muitas de nossas angústias não têm fundamento na realidade, mas são construções da mente. Assim, o verdadeiro perdão e a cura interior exigem a superação desse ciclo e a vivência plena da graça de Deus, que liberta e restaura o ser humano em todas as suas dimensões.

Como São João Paulo II nos ensina, a redenção de Cristo contempla não apenas a alma, mas também o corpo – nesse caso, em alguns casos, o processo psicossomático que chega a manifestar as marcas das dores e traumas vividos no corpo. O processo de cura, portanto, deve ser integral, envolvendo todas as dimensões da pessoa humana: física, psicológica e espiritual. Esse processo de cura pode ser comparado ao desembaraço do emaranhado das linhas supracitado neste texto, como aquele carretel que encontramos nas caixas de costura de nossas mães e avós. A verdadeira cura começa quando nos perdoamos, abrindo espaço para que Deus nos restaure por completo, trazendo leveza e paz ao nosso interior. A Igreja oferece ferramentas para a cura do corpo e da mente, como a confissão frequente, a direção espiritual com padres ou acompanhadores autorizados, e, quando necessário, o acompanhamento psicológico indicado pelos diretores espirituais.

O que mais me chamou a atenção é que, embora o movimento de autoperdão abra espaço para Deus nos restaurar, esse mesmo processo tem Deus como fator essencial para acontecer; é como se a Graça de Deus iluminasse a noite escura de nossas almas e mentes na mesma proporção que nos abrimos, com humildade e insistência, para nós mesmos, talvez a explicação esteja no fato de que é dentro de nós que Cristo se encontra, como disse Santo Agostinho:

“Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo…”

Para concluir, a superação da culpa falsa,  que perpetua o ciclo de autodepreciação, é essencial para transformar nossa maneira de pensar, como podemos ver, em Romanos 12,2, encontramos a seguinte exortação: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente.” Dessa forma, substituir pensamentos de autocondenação pela verdade do amor de Deus é um passo decisivo para alcançar a liberdade interior.  O homem que se vê apenas pela ótica de suas falhas permanecerá aprisionado no ciclo da fala culpa e da autopunição, no entanto, quando se consegue ver  através do olhar de Deus, como um filho pródigo amado e restaurado pelo sincero arrependimento, se tem início a verdadeira conversão: “Porque, se o nosso coração nos condena, maior é Deus do que o nosso coração, e conhece todas as coisas” (1 João 3,20), Deus é maior do que qualquer pecado que já se tenha cometido. Por isso, buscar a cura das feridas do passado, renovar a forma de pensar, substituir a culpa pela verdade da graça e cuidar de nosso corpo são etapas essenciais nesse processo. Pode-se resumir esse movimento no conceito analisado do autoperdão capaz de envolver a mente, o coração e o corpo, pois, ao acolher o perdão divino, encontramos uma paz que não depende de nosso passado, mas do momento presente, onde a verdadeira transformação pela graça ocorre. O passado já não existe e o futuro é incerto; o único tempo real é o presente — talvez por isso ele seja chamado de “presente”, pois é nele que o autoperdão se encontra, nos libertando e nos fortalecendo para, assim, perdoar os outros e nos tornar testemunhas vivas do amor e da misericórdia de Deus no mundo.

 

PROFESSOR EDUARDO FARIA