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A Formação do Caráter e a Palavra: A Metáfora do Kintsugi no Encontro Entre as Sagradas Escrituras e a Filosofia Grega

6 de março de 2025

“Aviso: Devido à extensão do texto, ele foi dividido em subtítulos. Peço desculpas aos leitores interessados por qualquer inconveniente.”

  1. A Palavra Como metáfora do Coração:

Ao ler o Evangelho do dia, encontro uma passagem frequentemente citada pelos católicos — ora com acerto, ora de forma leviana e, por vezes, para corrigir o próximo, quase nunca a si mesmo, naturalmente. Não me aprofundarei nos dois últimos casos, pois sua diversidade e complexidade os tornam intrincados, influenciados por inúmeras idiossincrasias interessantes apenas para psicólogos e sociólogos, o que não é o caso desse texto. Por isso, focarei no primeiro, mais objetivo, pois está ligado ao ensinamento da Igreja, a qual deveria ser seguida por aqueles dois ignorados por este texto. Essa passagem está intimamente relacionada à ideia das palavras refletirem o caráter, um topos que está presente tanto nos textos bíblicos quanto na literatura clássica. Para ser mais claro, esse topos se encontra na notória passagem do Evangelho de Lucas (6,45): “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois a sua boca fala do que está cheio o coração.” Cristo nos lembra que nossas palavras não são meros sons vazios, mas expressões diretas do que cultivamos internamente.

  1. A Provação do Caráter: O Trabalho Árduo e a Perseverança:

Essa ideia também é reforçada pela leitura do dia em Eclesiástico (27,5-8), que compara a provação do caráter humano à avaliação do oleiro: “Como o forno prova os vasos do oleiro, assim o homem é provado em sua conversa, (…); assim, a palavra mostra o coração do homem. Não elogies a ninguém, antes de ouvi-lo falar: pois é no falar que o homem se revela.” Esse ensinamento mostra que, assim como o fogo revela a resistência do barro, nossas palavras revelam a solidez de nossa formação moral. São Paulo, em 1 Coríntios (15,54-58), fala da transformação final do ser humano e do triunfo sobre a corrupção, ressaltando que a vida virtuosa não é em vão, mas um caminho para a incorruptibilidade.

Esse tema nos remete a Apocalipse (2,2): “Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança.” Ao analisarmos a palavra em grego, compreendemos melhor a metáfora do fogo da fornalha do oleiro testando o vaso e sua relação com as palavras. O termo grego “kopos” significa “trabalho árduo com fadiga”, indicando que os efésios mantinham sua dedicação sem queda na produtividade. Perder o primeiro amor não significa desânimo ou desejo de desistir, pois Jesus elogia sua perseverança (Ap 2,3). No entanto, essa perda é algo que Deus tem contra nós, exigindo arrependimento (Ap 2,4-5). Trata-se, portanto, de uma queda espiritual que precisa ser restaurada. Assim como o fogo prova a resistência do vaso, as palavras revelam a verdadeira condição do coração humano. Os efésios mantinham sua dedicação, mas perderam a essência do amor inicial, e essa falta se refletia não apenas em suas ações, mas no mais profundo de seu ser. O Senhor, que conhece as obras e a perseverança de cada um (Ap 2,2), também vê além do esforço exterior e sonda a intenção do coração. Assim como o oleiro molda o vaso, permitindo que o fogo revele sua solidez, Deus nos chama ao arrependimento para restaurar o amor genuíno que dá sentido à nossa caminhada espiritual.

  1. Oleiro e a arte do Kintsugi: Ouro da Graça para sanar as rachaduras:

Se nossas palavras são reflexo do coração, podemos entender a metáfora das palavras como símbolo do que há no coração humano, assim como as rachaduras revelam a integridade de um vaso após passar pelo fogo da fornalha. Assim como o calor testa a resistência do barro, as provações revelam a verdadeira formação do coração nas pequenas rachaduras das palavras. No entanto, somente um oleiro experiente (como um padre, diretor espiritual ou acompanhador autorizado pela Igreja — e não qualquer especialista autoproclamado em moralidade católica, cujo dom parece ser o de avaliar a santidade alheia com precisão cirúrgica segundo sua régua moral) seria capaz de observar se essas rachaduras comprometem a integridade do vaso.

No universo dos oleiros, há certas técnicas de cerâmica em que as fissuras são esperadas e até valorizadas, como no kintsugi, a arte japonesa de reparar cerâmicas quebradas com ouro. O ouro, como afirmou Santo Agostinho, simboliza a Graça. O kintsugi ilustra a exegese do oleiro bíblico ao transformar rachaduras em parte da beleza do vaso. De forma semelhante, Deus restaura seus filhos, tornando-os ainda mais valiosos. Jeremias (18) mostra o Senhor como o oleiro que refaz o vaso quebrado, e Paulo reforça que as fraquezas humanas revelam o poder divino (2 Cor 4,7). Assim, as rachaduras não indicam falha irreparável, mas podem ser marcas da graça e da redenção, quando moldadas pelas mãos de Deus. Se bem moldado e/ou reparado no amor de Deus, o coração se mantém firme e suas palavras são sábias e justas; se frágil e sem a orientação de um bom oleiro experiente em kintsugi (novamente, um sacerdote, um diretor espiritual ou alguém autorizado pela Igreja — não o causador de intrigas revestido de um fino verniz piedoso), suas palavras expõem sua fraqueza espiritual. Por isso, é essencial que nos deixemos moldar pelas mãos dos verdadeiros oleiros.

Por exemplo, no episódio de Marta e Maria (Lc 10,38-42), Jesus elogia Maria por ouvir atentamente Seus ensinamentos, mostrando que a escuta da Palavra é essencial para a purificação interior e a reparação das fissuras do coração com o ouro da Graça, assim como o oleiro especialista em Kintsugi. Já na Parábola do Semeador (Lc 8,13-14), vemos que, assim como o ouro preenche as rachaduras de um vaso quebrado, a fé pode ser facilmente perdida se o coração não for devidamente preparado. A falta de raízes profundas, representada pelo solo pedregoso, e o sufocamento pelas preocupações do mundo, como as ervas daninhas, são como fissuras que, sem a devida atenção e cultivo, impedem a fé de se fortalecer, deixando o coração fragilizado. No entanto, assim como no Kintsugi, onde a reparação das rachaduras com ouro cria uma nova beleza e resistência, a Palavra de Deus, quando escutada com atenção e cuidado, pode transformar as dificuldades e as falhas do coração em algo renovado e mais forte. Assim, para que nossas palavras e nossas ações sejam verdadeiramente boas, é necessário um labor “kopos” árduo e constante com a escuta e a prática da Palavra e, sobretudo, a humildade de nos colocarmos nas mãos dos verdadeiros oleiros.

  1. A Formação do Caráter na Tradição Filosófica:

Esse tópico, como mencionado acima, é amplamente discutido entre os gregos. Aristóteles, entre os vários exemplos de outros gregos e escolas, em sua Ética a Nicômaco, ensina que a virtude não nasce conosco, mas é adquirida pelo hábito constante e assíduo: “Nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; antes, somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito.” Esse pensamento ressoa perfeitamente com as Escrituras, que nos ensinam que a retidão não é um dom automático, mas o fruto, também, de um trabalho contínuo — o “kopos” — de aperfeiçoamento, como vimos acima exaustivamente até agora. Esse labor árduo pode ser comparado ao fogo que aquece e purifica o coração; mesmo que, ao final, o coração saia com algumas imperfeições ou fissuras, o Divino Oleiro e Seus enviados podem corrigir essas falhas com o ouro da Graça, tornando a obra ainda mais bela do que antes. Assim como um coração bem cultivado gera palavras boas, o caráter só se fortalece com a prática constante da virtude, algo que Aristóteles denomina como hábito.

  1. Epicteto e a Coerência Entre Discurso e Ação:

Além de Aristóteles, outro filósofo relevante, mas pouco conhecido, é Epicteto – um dos principais pensadores do estoicismo -, cuja obra nos chegou principalmente através dos escritos de seus alunos. Em seu Diatribes, ele enfatiza a importância da coerência entre o discurso e a prática, algo que também ressoa nos ensinamentos da tradição católica. Para ilustrar essa ideia, destaco uma passagem de sua obra que reforça o ponto: “Se Crisipo não tivesse escrito de maneira obscura, você não teria do que se orgulhar, mas o que desejo é mostrar como um “homem sábio fala e age de forma coerente” (…).” Essa reflexão nos leva à conclusão de que o conhecimento não tem valor se não for vivido: Fala e ação sintonizados. Assim como Aristóteles, que nos ensina que a virtude se adquire pelo hábito constante e pela prática, Epicteto também nos lembra que o verdadeiro caráter se revela não nas palavras, mas nas ações que delas derivam.

Essa perspectiva ecoa os ensinamentos de Cristo, que nos adverte que a verdadeira fé não se limita a palavras vazias, mas se manifesta nas atitudes e na transformação interior. Se nossas palavras são o reflexo do que há em nosso coração, como o fogo que prova a resistência do barro ou como as rachaduras de um vaso preenchidas pelo ouro da Graça no kintsugi, nossas ações também devem ser moldadas pela virtude e pela prática constante do bem. Para melhor ilustrar, em seu Encheirídion, Epicteto recomenda cultivar um caráter firme, que se reflita não só nas ações, mas também nas palavras, tanto em momentos de solidão quanto em companhia. Ele ainda sugere a moderação nas conversas, evitando críticas vazias e focando apenas no que é relevante, assim como evitando risos excessivos e ostentações desnecessárias. Essa moderação nas palavras reflete um trabalho árduo (o labor grego) e contínuo no cultivo do caráter, algo que, segundo ele, deve ser uma constante.

Além disso, Epicteto ensina que, quando alguém falar mal de nós, não devemos nos defender, pois a crítica de uma falha geralmente revela mais sobre a ignorância do outro do que sobre nossos próprios defeitos, então ele sugere responder com humildade, dizendo: “Ele desconhece meus outros defeitos, ou não teria mencionado apenas esses.” Essa atitude reflete a verdadeira moderação que Epicteto preconiza, pois nossa fala, assim como nossas ações, deve ser um reflexo autêntico do que cultivamos internamente.

Em suma, tanto Aristóteles quanto Epicteto nos ensinam que a virtude é cultivada pelo hábito, assim como as Escrituras nos mostram que o coração precisa ser moldado pela verdade divina para que nossas palavras e ações expressem um espírito renovado. Esse processo não ocorre por acaso, mas requer esforço contínuo, disciplina e a escolha diária pelo que é bom, verdadeiro e belo. Quando, porventura, houver falhas ou rachaduras em nossa formação, podemos confiar no Oleiro Divino, que, com Sua Graça, preencherá essas fissuras com o ouro da redenção, tornando-nos mais fortes e mais belos, como a arte do kintsugi revela.

 

PROFESSOR EDUARDO FARIA