Quando comecei a ler a Teologia do Corpo de São João Paulo II, algo me chamou a atenção de imediato quanto à palavra hebraica בָּשָׂר (bãsãr), comumente traduzida como “carne”, cujo significado varia conforme o contexto no qual ela é utilizada. No Antigo Testamento, o termo se refere, inicialmente, à carne, mas abrange outros sentidos, como o corpo humano, relações familiares, a humanidade em geral e até mesmo todos os seres vivos. Mas a análise que interessa estaria relacionada à raiz desse verbete: A raiz “bõsem” (בֹּשֶׂם) no alfabeto hebraico é escrita como בֹּשֶׂם. Essa palavra é frequentemente traduzida como “perfume” ou “incenso” e está associada a fragrâncias, aromas agradáveis e tem relação com outras palavras como boas novas e a mencionada carne. Dessa forma, ao longo deste texto irei explorar estes significados contextualizados à luz da Teologia do Corpo.
No hebraico bíblico, בָּשָׂר (bãsãr) pode também simbolizar a efemeridade e a mortalidade humanas, em contraste com a vida divina e espiritual, a brevidade representada dentro desses contextos inter-relacionada com a tradução por perfume, faz lembrar o poeta alemão Friedrich Holderlin:que compara a vida a um campo de flores aromáticas que perece. Em contraste a esta efemeridade, mas o que realmente a deixa perfumada, encontra-se em Gênesis 6:3, o “Espírito” de Deus é contraposto à “carne” dos homens, ressaltando a transitoriedade da vida humana, mas também a elevando ao ser soprada com o Sopro de Deus. Esta dualidade da antropologia humana é reforçada quando, ao ser usada com o sentido de “osso”, (bãsãr), aparece no Velho Testamento tanto para denotar o corpo físico quanto para “alma”. Esta realidade reflete a concepção hebraica de uma unidade entre corpo e alma, que não são vistos como elementos separados e autônomos, o que coaduna com a visão da Igreja.
Com isso, chega-se ao pensamento de Wojtyla, ao apresentar uma abordagem paralela quanto à análise do corpo no verbete hebraico ao unir a visão fenomenológica de Max Scheler, (a experiência humana mediada pela dimensão corporal) com a tradição ontológica de São |Tomás (a carne é unida à alma, formando uma unidade substancial). Dessa união, o Papa João Paulo II afirma que o corpo, ou carne, não é um mero instrumento do espírito, mas um meio de expressão e uma dimensão constitutiva do ser humano.
Além disso, como בָּשָׂר (bãsãr) também é usado nas narrativas de triunfos a denotação de boas novas ou notícias, este verbete acabar por carregar um significado de esperança e libertação. O mensageiro que traz as boas novas é uma figura central, simbolizando a chegada de um novo tempo e a superação de adversidades. Essa ideia se expande no texto de Isaías, onde o Senhor, como vitorioso, promete libertação ao seu povo, culminando na realização dessa mensagem em Cristo, Deus na carne de um homem, voltando a tornar este corpo glorioso, como era antes da queda.
Dentro deste raciocínio,, בָּשָׂר (bãsãr) acaba por adquirir uma conotação mais complexa, ao simbolizar a carne como boas novas (nascimento de Cristo) e, como toda boa nova, se espalhar pelo ar como um bom perfume, mas, em contrapartida, por extensão, a vulnerabilidade da condição humana ainda permanece como a da flor do poema de Friedrich Holderlin. A palavra reflete a fragilidade e a mortalidade, ressaltando a transitoriedade da vida, mas, sobretudo, a lembrança das boas novas que se pode alcançar através deste mesmo corpo. O uso de בָּשָׂר (bãsãr) no Antigo Testamento muitas vezes concebe esta unidade entre corpo e alma, concepção crucial na filosofia hebraica, que não separa esses elementos como entidades autônomas.
Dessa forma, a intersecção sugerida entre בָּשָׂר (bãsãr) e o conceito de “carne” na Teologia do Corpo de João Paulo II pode ser vista como uma reflexão profunda sobre a condição humana e a transcendência divina. O mensageiro que traz boas novas (בָּשָׂר) não apenas comunica uma vitória militar nas passagens do Velho Testamento, mas simboliza a esperança de libertação da mortalidade do pecado, uma mensagem que veio para a humanidade através da Santa Virgem, e o seu aroma invadiu todo o mundo com esta boa nova. Assim, o conceito de mensagem se torna um elo entre a existência terrena e a promessa do paraíso.
E, como foi dito acima, no pensamento de São João Paulo II se enfatiza a importância do corpo como expressão superior da pessoa humana em uma realidade ontológica superior – a relação com Deus. Além disso, a visão de que o corpo e a alma formam uma unidade integral ressoa com a concepção hebraica de בָּשָׂר (bãsãr). O corpo, em sua vulnerabilidade, é também o veículo através do qual a mensagem divina é comunicada, e, sobretudo, longe de ser um mero receptáculo da fraqueza humana, torna-se um meio de participação na vida divina através do corpo de Cristo, fruto aromático da Rosa das Rosas, da Senhora das senhoras, Nossa Senhora. Um perfume que não terá o mesmo fim que teve o do poeta alemão. Essa abordagem filosófica e teológica leva a uma reflexão sobre a dualidade da existência humana: somos seres limitados pela carne, mas também portadores de uma mensagem de esperança e redenção entregue a nós de graça.
Professor Eduardo Faria