Durante a leitura do Evangelho -Mateus 22,1-14 – e do capítulo terceiro de Gênesis, 6-10, foi possível perceber uma relação intertextual com a literatura clássica, especificamente com Odisseu e a dificuldade de reconhecimento de seus familiares e servos. A fim de melhor explicar, o herói, após 18 anos sofrendo nos mares, condição imposta por Poseidon, retorna a Ítaca, mas, por deliberação da deusa Atena, ele ganha um disfarce, aparentando ser apenas um simples andarilho mendigo, isso com o objetivo de testar a fidelidade do povo, dos seus servos e familiares, a qual, como se revelou, estava afundada em falta de fé em sua volta, abusos dos bens do castelo, em suma, traição e abusos de toda sorte. Essa situação pode ser interpretada como a cegueira e a surdez espiritual de uma sociedade que, após a transgressão original – como a da passagem de Gênesis supracitada -, perdeu a capacidade de reconhecer a verdade. No caso do palácio e reino de Odisseu, esse tema da cegueira espiritual poderia vir da traição de alguns dos seus servos, por darem suporte aos pretendentes, e da atitude ultrajante desses pretendentes de Penélope que, em um ato de usurpação e desrespeito aos bens de Odisseu, fazem uso indevido da terra e da casa do herói e ainda cobiçam a esposa do verdadeiro Rei sem a certeza de sua morte, atentando contra os princípios básicos das regras da hospitalidade, as quais são observadas pelos deuses em seu respeito. Além disso, alguns servos de Odisseu se aliaram aos pretendentes, atitude que os condenará à morte quando o rei finalmente retomar seu trono—uma cena que remete ao retorno de Cristo Rei, ao julgar os servos que não vestiram a veste nupcial, como está na Parábola das Bodas em Mateus 22,1-14.
O homem e a mulher, em Gênesis, ao desobedecerem à ordem divina e comerem o fruto proibido, experienciam uma ruptura profunda com a comunhão vivenciada com Deus. Essa transgressão não só os torna conscientes de sua nudez, mas também inaugura uma nova forma de relação, marcada pelo utilitarismo, uma das causas da vergonha. A fim de melhor explicar este ponto sobre o que é utilitarismo, a partir desse momento, o outro deixa de ser um dom de comunhão com Deus, e, assim, também com o outro, para tornar-se um meio para satisfazer a própria vontade deslocada da vontade de Deus. Essa cegueira espiritual revela como o pecado corrompe a experiência originária do amor (plano inicial de Deus), substituindo a comunhão perfeita pela busca egoísta do prazer e da posse, ou seja, o utilitarismo. Na perspectiva filosófica, esse fenômeno pode se alinhar à crítica de São João Paulo II a esse utilitarismo, que reduz a dignidade da pessoa ao seu valor meramente instrumental, esvaziando a reciprocidade e o significado mais profundo e originário do amor humano.
Por isso, quando ouviram a voz de Deus, eles se escondem, incapazes de reconhecê-Lo na íntima comunhão que experimentavam com Ele e que fundamentava a comunhão entre o casal. Essa ruptura com a verdade e com essa comunhão divina pode ser vista como a cegueira e surdez que afligem a humanidade desde então. Assim, o homem perde a capacidade de enxergar o verdadeiro sentido das relações humanas, tornando-se surdo à palavra de Deus, já que o verbo Divino preenche o sentido de tudo e das relações entre homem e mulher, que antes lhe era verdadeiramente vivificante.
Partindo desse contexto, podemos observar a figura de Odisseu, que, ao retornar para seu reino e palácio, encontra seus servos na condição de traidores devido à cegueira da falta da fé e da fidelidade a ele. Embora seja o herói aguardado por todos em seu reino, seu retorno é marcado por uma alienação semelhante à do casal após a queda: ou se ocultam, envergonhados pela relação utilitarista e concupiscente que passou a estabelecer com o próximo e com as coisas, ou não conseguem enxergar a verdadeira identidade quando o Salvador verdadeiro finalmente chega. Da mesma maneira, o ser-humano, que, após perder a comunhão perfeita com Deus, teve sua visão espiritual comprometida pelo pecado e deixou de reconhecer a palavra divina, a presença de Odisseu permanece velada pelos abusos e traições dos pretendentes e dos servos de Odisseu (apenas poucos servos se conservam fiéis como Eumeu e a velha serva que reconhe Odisseu quando o toca em sua ferida, o que lembra a mulher que toca as franjas da túnica de Cristo), corrompidos pelo uso desordenado dos bens do palácio e pelo desejo utilitarista em possuir Penélope. No entanto, a identidade de Odisseu precisa ser restaurada e revelada, assim como a comunhão perdida entre Deus e o homem deve ser também restaurada por meio do Cristo prometido, mas não reconhecido pelo seu próprio povo, como os servos de Odisseu.
No entanto, Penélope e Telêmaco, sua esposa e filho, são capazes de reconhecê-lo. Penélope, pela fidelidade e paciência, e Telêmaco, pela esperança e determinação, conseguem ultrapassar a cegueira que afeta todos à sua volta. Eles são como espelhos espirituais que, ao contrário da sociedade ao redor de Odisseu, não estão cegos nem surdos para a verdade. Eles reconhecem Odisseu, porque, de certa forma, mantêm vivo o relacionamento com a verdade que transcende o utilitarismo vigente e está além da aparência.
O mais interessante é que essa ideia de reconhecimento nos remete ao homem curado por Cristo em Marcos 7,31-37. Ele é descrito como alguém incapaz de ouvir e de se comunicar plenamente com o mundo. Dentre as várias exegeses dessa passagem, a maioria converge no fato de que sua condição simboliza a cegueira espiritual da humanidade, que não consegue ouvir a palavra de Deus nem reconhecer Sua presença. No entanto, quando Jesus pronuncia a palavra Efatá (“Abre-te!”), os sentidos do homem são restaurados. Ele passa a ouvir, a falar e, consequentemente, a reconhecer a verdade e a participar plenamente da comunidade humana.
Assim como Penélope e Telêmaco reconhecem Odisseu por manterem viva a conexão com ele — ela pela fidelidade, ele pela esperança que provoca Atena a retirar o disfarce do pai —, o homem curado por Cristo também reencontra sua identidade através da fé e da palavra que restaura sua comunicação com Deus. Ainda assim, Telêmaco hesita em acreditar, até que Odisseu lhe diz: “Sou eu, Telêmaco, teu pai”, assim como o homem de Marcos 7,31-37 só reconhece plenamente a verdade após ouvir de Cristo o Efatá (“Abre-te!”). O verdadeiro reconhecimento só ocorre onde há amor e fé autênticos, enquanto aqueles que reduziram o palácio e o reino de Odisseu a um mero meio de interesse, explorando sua casa e cobiçando sua esposa como um objeto de posse, permanecem cegos — como alguns servos e os pretendentes. Essa cegueira, causada pela desesperança e pela corrupção dos desejos, reflete o obscurecimento espiritual do homem quando as relações deixam de ser fundamentadas na comunhão com o outro através da comunhão com Deus e passam a ser regidas pelo utilitarismo concupiscente, que instrumentaliza tanto os bens quanto as pessoas. Assim como Telêmaco, Penélope parece reconhecer Odisseu após a entrevista com seu marido na forma de mendigo, mas escolhe não demonstrá-lo de imediato, confiando nos planos de seu esposo, já que ele ainda não quis se revelar. Tanto o herói grego quanto o homem curado por Cristo simbolizam a restauração da visão e da audição espirituais, que, no plano mais profundo, remetem à redenção do ser humano e à restauração de sua dignidade, recuperando aquela comunhão com Deus que fora rompida pelo desequilíbrio provocado pela queda — uma plenitude que só pode ser restaurada pela palavra divina.
Em ambos os casos, seja na Odisseia ou na cura realizada por Cristo, a restauração da visão e da audição não é apenas física, mas espiritual, exigindo um reconhecimento profundo da verdade oculta, acessível apenas àqueles que preservam a esperança e a fidelidade à verdade maior. A sociedade caída, obscurecida pela cegueira e surdez espirituais, não consegue perceber a plenitude dessa verdade, pois suas relações, muitas vezes, são regidas pelo interesse e pelo utilitarismo, reduzindo o outro a um meio para satisfação própria e egoísta. No entanto, aqueles que são tocados pela palavra da redenção não apenas veem e ouvem, mas também reencontram o verdadeiro significado da vida e das relações, restaurando a comunhão com Deus e com o próximo na dimensão do amor autêntico, livre da corrupção do desejo desordenado, e, com isso, uma nova vida, restaurada em Cristo, é gerada, assim como o reino de Odisseu é restaurado em uma nova ordem.
PROFESSOR EDUARDO FARIA