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A Alma em Batalha: A Luta Espiritual à Luz de Santa Teresa, Santo Agostinho e São João Paulo II

2 de junho de 2025

Santa Teresa de Ávila, alma profunda e conhecedora dos mistérios do coração, ensinava com voz doce e firme: “Não há estado de oração tão sublime que não exija, muitas vezes, o retorno ao princípio.” Essa verdade, sussurrada pelas chamas de uma das mais puras místicas, desfaz a ilusão que habita tantos corações — a ilusão de que o avanço no caminho espiritual extingue as fraquezas humanas. Ao contrário, Santa Teresa revela que, mesmo o mais elevado voo da alma precisa pousar, vez após vez, na terra humilde do autoconhecimento e da verdadeira humildade. Não há espírito tão altivo que não precise, por vezes, voltar a ser criança — a mamar como um bebê na fonte da graça — reconhecendo a própria fragilidade, a dependência absoluta do amor divino, e acolhendo, com mansidão, a própria indigência. Nesse contexto de luta e renúncia, Santo Agostinho ergue sua visão, entrelaçando o visível e o invisível, a terra e o espírito, para ele, a realidade do homem é o entrelaçar de duas cidades — a Cidade de Deus e a Cidade dos homens — não apenas lugares, mas símbolos vivos da guerra que se trava dentro de cada coração. Essa dicotomia, tanto palpável quanto interior, advém do pensamento de Platão, que, em sua República, descreve a cidade governada pela justiça, onde a alma encontra seu equilíbrio entre razão e desejo; e dos postulados de Plotino, nas Enéadas, ao falar da cidade cósmica perfeita, aquela que brilha além do mundo, onde toda alma deseja repousar.

Assim, se tais verdades ditas pelo santos e filósofos antigos citados acima ressoam nas alturas do espírito, não é menos verdade que se encarnam, com igual força, na carne frágil dos nossos dias, onde cada alma é chamada a viver, na concretude do tempo, o drama silencioso entre luz e trevas encarnado na metáfora dessas cidades.   No entanto, quatro séculos e meio depois do raciocínio da santa sobre essa luta na alma do homem, esse ensinamento permanece atual, pois um dos equívocos mais recorrentes entre nós, católicos — especialmente entre aqueles que acabaram de experimentar o impacto transformador do primeiro toque do Espírito Santo — é acreditar que, a partir desse encontro, não mais enfrentarão dúvidas, quedas, pecados ofensivos ou vergonhosos. Tal engano é semelhante ao de São Pedro, que, no mesmo dia em que foi consagrado o primeiro Bispo da Igreja, negou três vezes o próprio Cristo — Simão, Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo, mas eu roguei por ti, (…) e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos. Na realidade, momentos como esse de fragilidade e luta interior fazem parte inevitável do caminho rumo à santidade de absolutamente qualquer católico, retornando frequentemente como provas que interpelam o coração de todo fiel. Nesses períodos, o coração humano se assemelha a uma cidade devastada — como Sião na leitura de Sofonias, coberta por poeira e silêncios —, pois são ocasiões em que os desejos se desordenam, a alma se agita e tudo parece resistir ao consolo. Contudo, é precisamente nesse terreno árido do espírito que se revela uma verdade fundamental: os desejos humanos — tão persistentes e profundos — não são meros caprichos passageiros, mas indícios de um amor originário, marcas de um paraíso perdido para o qual fomos criados. Apesar de muitas vezes esses desejos serem confundidos e satisfeitos por coisas finitas, como que numa tentativa infeliz de preencher o abismo infinito da alma com realidades que, por sua natureza, não podem saciá-la. Mas quando há vitória do discernimento para o que realmente se deseja: o Deus infinito, será nesse chão seco da alma, que se levanta, que ressoa, com força renovada, a promessa que jamais deve ser esquecida: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para salvar” (Sofonias 3); essa certeza, por vezes redescoberta na oração silenciosa ou na lectio divina — que me levou a estas palavras desse texto —, ecoa como luz no meio da escuridão e sustenta a alma no combate cotidiano.

É precisamente nesse contexto de luta interior explicado pela doutora da Igreja, onde a alma se vê dividida e fragilizada, que Santo Agostinho lança uma luz profunda sobre a natureza desse conflito espiritual: ao contemplar o colapso de Roma e os escombros do mundo antigo, ele percebeu que dentro de cada pessoa existe uma batalha incessante entre duas “cidades”: uma fundada no amor a Deus, que leva ao desapego de si mesmo — a Cidade de Deus — e outra erguida no amor próprio, que culmina no desprezo a Deus — a cidade dos homens. Essas cidades não são apenas realidades externas, mas pulsos espirituais no íntimo do coração. E quando tudo parece em ruína, quando o exílio interior nos fere com sua ausência de sentido, é justamente aí que se manifesta a escolha mais decisiva: a de qual cidade desejamos habitar. Enquanto a filosofia aponta o desejo como movimento em direção ao bem e à unidade, a teologia cristã aprofunda esse entendimento, revelando que o coração humano — por vezes devastado como Sião em ruínas — guarda em si o anseio pelo encontro com Deus, fonte última da felicidade. Como dito acima, Santo Agostinho ensinou que dentro de nós coexistem estas duas cidades: a Cidade de Deus, fundada no amor divino, e a cidade dos homens, fundada no amor próprio — a leitura de Sofonias 3 pode ser compreendida à luz dessa perspectiva agostiniana, que diz: “Ai da cidade rebelde, impura e opressora! Não confia no Senhor, não se aproxima do seu Deus”; e também: “Mas deixarei no meio da cidade os mansos e humildes, que se refugiarão no nome do Senhor”. Essa batalha interna representa o verdadeiro campo do exílio e do retorno mencionado na leitura. Além disso, para corroborar a argumentação até o momento, São João Paulo II, na Teologia do Corpo, destaca que os desejos humanos, mesmo após o pecado, não são obstáculos, mas sim pistas para a comunhão divina — reforçando que essa luta entre as duas cidades dentro de nós, a Cidade de Deus e a cidade dos homens, encontra no anseio profundo da alma o terreno onde se dá o verdadeiro conflito e a possibilidade da redenção. Deus, em sua misericórdia, visita as almas feridas e cingidas, oferecendo redenção que transforma o exílio interior  em cântico, como o Magnificat de Maria, que eleva o desejo humano à plenitude da Cidade de Deus. Assim, a filosofia e a fé se encontram para mostrar que o desejo humano é chamado à transformação, do deserto da errância dos hebreus com Moisés  para o jardim edênico, da ruína para a cidade viva, onde o amor encarnado de Cristo realiza a verdadeira restauração do coração.

Em paralelo, a Teologia do Corpo ensina que o desejo humano não é inimigo da santidade, mas expressão de um coração criado para o infinito. O problema, após a queda, não é o desejo em si, mas sua desorientação: torna-se como um rio fora do leito, buscando plenitude onde não há verdadeira fonte. Contudo, mesmo quando o desejo conduz por veredas sombrias, Deus não se retira, Ele intervém, Ele se aproxima e a Cidade de Deus se ergue — embora invisível — no interior de cada alma que ama com autenticidade, que se entrega silenciosamente e confia, mesmo entre lágrimas. Cada “sim” dado, cada arrependimento sincero, cada desejo redimido, torna-se pedra viva nessa edificação interior. Não se trata de fuga do mundo, mas da escolha de um novo princípio: o Amor que se oferece até o fim. 

Ao dizer “Faça-se em mim”, Maria não renunciou ao desejo — antes, o consagrou. O que nela poderia ser anseio humano, tornou-se espaço de morada divina. Seu corpo fez-se templo, sua alma, cântico; e como verdadeira filha de Sião — conforme o anúncio de Zacarias: “Exulta, cidade de Sião! Eis que vem a ti o teu Rei” — ela acolheu o Altíssimo, não por ignorar a dor, mas por reconhecer a grandeza daquele que se inclina à pequenez. O seu Magnificat é a melodia da alma que foi ferida pela Luz: canto de quem sabe que a misericórdia é maior que toda miséria humana. Como Demódoco, o aedo da Odisseia, que narrava feitos heróicos movido pelas musas, também Maria canta — mas não as glórias dos homens nem suas guerras efêmeras. Sua voz não nasce do mito, mas do Espírito que pairava sobre as águas. Ela é a nova cantora do Reino, cuja harpa não entoa lutas entre tronos e espadas, mas o cântico da Misericórdia que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes. Maria canta como quem vê o que os olhos não enxergam. Seu cântico revela o invisível: o Deus escondido, que se revela não no trovão, mas no silêncio do ventre. E ali, no recôndito de seu “sim”, começa a redenção — não como ficção recitada nos salões dos reis, mas como encarnação viva da Promessa. É o Verbo que nela se fez carne, e com Ele, o Reino começa a despontar na história.

Assim como Maria, ao pronunciar seu “faça-se em mim segundo a tua palavra”, abriu a porta à Redenção, também a história de cada alma pode ser transformada quando o Verbo divino encontra, mesmo que tênue, uma fresta no coração marcado pelas quedas e pecados incessantes. Até mesmo aqueles que, como Santo Agostinho, vaguearam pelas sombras de amores desordenados e prazeres que ferem, ao se depararem com o Amor verdadeiro, clamam: “Tarde te amei! […] Tu me chamaste, clamaste e rompeste minha cegueira; tu me lançaste fora, e correste atrás de mim, e me deste a vida, e me fizeste gozar de ti.”; e Deus, abundante em misericórdia, não só perdoa, mas entoa um cântico de júbilo pelos que retornam, conforme a voz do profeta Sofonias. Ele, que é o Senhor da salvação, dispõe os caminhos, os momentos, as mãos amigas e até o sacerdote nas horas últimas — para que nenhum se perca, desde que um “sim” sincero, ainda que frágil e ferido, ressoe no íntimo. E se o ministério humano faltar, Ele mesmo concede a graça da contrição perfeita, também ela dependente desse mesmo “sim” do pecador. Como relembra Santa Faustina, mesmo quando a alma jaz em decomposição, quando tudo parece perdido aos olhos do mundo, a misericórdia divina é capaz de ressuscitá-la inteira, por completo. “Frequentemente, acompanho as almas que estão morrendo, e obtenho para elas a confiança na misericórdia de Deus.” (Diário §163). Nada se perde, nada se extingue, para aquele que confia.

“Enfim, a cruz de Cristo não foi — e jamais será — uma mera tentativa entre tantas, mas a resposta definitiva para se alcançar a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a pólis da verdadeira felicidade de Aristóteles e a cidade cósmica perfeita de Plotino. Seu sangue não representa apenas uma esperança: é a ponte real, concreta e eterna, entre o humano ferido e o divino que redime. “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43) não é uma possibilidade: é uma certeza selada pelo sangue do Cordeiro — Deus Filho não se sacrificaria em vão, jamais. Dessa forma, esse sangue clama mais alto do que todos os pecados; mesmo que a concupiscência ainda nos faça tropeçar, se o coração permanecer voltado para Deus após cada queda, Ele, em sua infinita misericórdia, providenciará a graça. Mesmo no último suspiro, quando todo o mundo se aquieta e a alma, por vezes ferida e sedenta, suspira com um anseio profundo pelo Amor, a redenção pode florescer como chama que nunca se apaga; pois no recôndito mais secreto do coração humano arde um clamor manso e incessante: amar e ser amado para sempre por Deus, e nada menos do que esse infinito amor pode saciar essa sede ardente. E somente Cristo é capaz de saciar essa sede, ainda que muitos não a percebam, pois, como Santa Teresa nos adverte, ‘não há coisa alguma que o Senhor deseje mais do que dar-se a conhecer às almas e fazê-las participar do seu amor; e quão poucos são os que o deixam entrar e o aceitam.’ Assim, mesmo entre as sombras da dúvida e da cegueira, persiste a promessa do Amor que nunca rejeita o coração disposto a abrir-se, ainda que tardiamente, para a graça sublime que vem do alto.Por isso, com ardor muito violento — porque o reino dos céus se toma à força —, suplico: abre em meu peito o espaço onde habita o silêncio para ouvir sua doce voz, canta sobre mim, chama-me à chama de teu amor eterno. Ainda que tantas vezes me tenha rebelado, como Simão te negando vergonhosamente à sombra daquela noite, e ainda que tantas quedas e pecados tenham marcado minha jornada, quero agora, na alma despojada de mim mesmo, amar-Te sem fim. Dá-me a força de sempre me levantar, sustentado pelo perdão que brota do teu sangue oculto, e que, mesmo na minha cegueira que insiste em nublar minha vista, eu possa reconhecer a luz da tua face. Que minha vida, entre sombras e luta, se faça um cântico que revela ao mundo e sobretudo aos jovens a quem leciono a presença do invisível — porque o Amor, aquele Amor que tudo consome e purifica, já venceu. Santa Teresa, que um dia afirmou que não há estado de oração tão sublime que dispense o retorno ao princípio, saberia reconhecer, nestas palavras, o eco da alma que volta, humilde, ao chão fecundo do amor primeiro. Se o paraíso já foi conquistado, resta-me apenas dar o meu “sim”. Um sim talvez frágil, mas sincero, e permitir que o Espírito transforme o meu deserto em jardim. Porque o desejo, quando redimido, torna-se adoração, e o coração humano, quando tocado por Cristo, finalmente aprende a cantar.

PROFESSOR EDUARDO FARIA