O que temos em comum com alguns dos grandes heróis bíblicos e outros míticos como Odisseu, Hércules, Perseu, Jó, Elias, Moisés e, mais recente na história, o pequeno Frodo? Desde o momento em que os primeiros homens se sentaram em torno de fogueiras à noite para se protegerem de toda uma natureza hostil, os mais velhos contavam histórias sobre as lutas dos heróis perante os infortúnios do mundo e da alma. Estas histórias, repletas de deuses implacáveis, representam as forças da natureza e o destino encarados por estes heróis. No entanto, o ponto alto dessas narrativas são as quedas e superação dos heróis perante estes desafios, assim como o maior exemplo de todos deste tópico, O Cristo no Jardim das Oliveiras.
Em diversas passagens bíblicas, deparamo-nos com personagens que expressam momentos de profunda aflição, desespero ou angústia diante das circunstâncias que enfrentam. Jó, Jeremias, Moisés, Elias, todos, em diferentes contextos, experienciam momentos nos quais se sentem oprimidos pela adversidade. Alguns amaldiçoam o dia do seu nascimento; outros, em busca de alívio, clamam pela própria morte como uma forma de escapar; e, por fim, há aqueles que, tomados pelo temor, imploram para não enfrentar o destino revelado. Esse clamor de humanidade dos grandes nomes bíblicos em suas fraquezas nunca representou uma justificativa para covardia ou entrega total ao desespero. Pelo contrário, é, sobretudo, uma mensagem deixada por Deus ao inspirar a escrita destas passagens para nos lembrar que, assim como Moisés, ao expressar sua angústia diante do desafio de guiar o povo hebreu e suprir suas necessidades, pede a Deus que o mate se ele não puder encontrar uma solução: “Se tratares assim a mim, mata-me, peço-te, se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes ver a minha aflição – Números 11:15.”
Como Moisés, Elias, exausto e desencorajado, elevou sua voz ao céu, suplicando que a vida lhe fosse tomada. Esta passagem, um retrato da alma humana, revela a fragilidade do ser humano ao se desnudar do orgulho diante do Senhor: “(…) no deserto, Elias se sentou debaixo de um zimbro e pediu para si a morte: Já basta, ó Senhor, toma agora a minha vida, pois não sou melhor do que meus pais”. Estes dois grandes profetas, exemplos de resignação e obediência a Deus, não ficaram impunes às paixões da alma e tiveram momentos de desânimo absoluto ao ponto de pedirem a morte a Deus. Surpreende, porém, está na resposta de Deus, pois não há repreensão pela fraqueza, na verdade, o Senhor, como que ignorando o fato, simplesmente aponta o caminho a seguir, e, assim, estes profetas, mansos de coração, obedecem. Novamente a reação de Deus a respeito da natureza humana se repete de maneira semelhante na vida de vários profetas, o que reitera um tópico narrativo recorrente.
Esta recorrência tem sempre o mesmo tom tranquilizador com Deus, algo que, inclusive, se encontra de maneira definitiva na figura de Cristo, o Verbo Encarnado. No mesmo modelo dos profetas, Jesus demonstra temor diante da paixão que viveria, mas, também, seguiu seu destino com confiança depositada no Pai. A narrativa que se inicia no Jardim das Oliveira e termina na Cruz remete a Frodo, um personagem mais próximo cronologicamente, que sai da segurança de sua terra natal, contrariando a natureza de sua raça comodista. Sua longa viagem é um sacrifício para destruir O Um Anel, artefato que ele nem conhecia direito o peso que acarretaria em seu caminho. Uma jornada marcada por medo, derrotas, fracassos, desejos de desistir, enfim toda sorte de sofrimentos, mas ele vai até o final, e como paráfrase da Paixão de Cristo, ele destrói o Anel, símbolo do pecado.
O Cristo, estes profetas e o pequeno Frodo, ícones de resignação e obediência, não escaparam das tormentas da alma, mergulhando em momentos de desalento absoluto, até mesmo, alguns deles, suplicando pela morte em algumas situações. Neste ponto, Mansidão não seria sinônimo de indiferença, e sim de uma resiliência diante das próprias tempestades do coração. Seria como o marinheiro que observa o mastro firme da fé enfunado com os ventos da esperança, ao contrário de se desesperar com a força das ondas. Ainda poderíamos citar outros grandes nomes bíblicos, como Jó e a sua maldição lançada contra o dia do seu nascimento como manifestação de seu cansaço diante das tantas adversidades.
Há ainda os heróis míticos os quais apesar da visão moldada na coragem e triunfo sobre desafios formidáveis dos heróis gregos, ainda representam, em alguns momentos, o homem perante forças aterradoras e, porque não dizer, convidativas como fuga das dores. Uma destas cenas se encontra na passagem do diálogo entre a deusa ninfa Calipso e Odisseu, nesta conversa, a ninfa oferece a Odisseu a imortalidade e, assim, ele a teria pela eternidade. Contrariando as expectativas, pois o medo da morte seria o argumento mais contundente para aceitar o convite, Odisseu assim responde: “Respondendo-lhe, assim falou o astucioso Odisseu: «Deusa sublime, não te encolerizes contra mim. Eu próprio sei bem que, comparada contigo, a sensata Penélope é inferior em beleza e estatura quando se olha para ela. Ela é uma mulher mortal; tu és divina e nunca envelheces. Mas mesmo assim quero e desejo todos os dias voltar a casa e ver finalmente o dia do meu regresso. E se algum deus me ferir no mar cor de vinho, aguentarei: pois tenho no peito um coração que aguenta a dor. Já anteriormente muito sofri e muito aguentei no mar e na guerra: que mais esta dor se junte às outras.”
Neste diálogo, somos confrontados com a mesma dualidade dos profetas: a resiliência testada não apenas por ameaças de morte – sofridas por Elias – e por sofrimentos – vividos por Jó -; mas também testada diante de dilemas existenciais e emocionais como os apresentados nesta cena. Odisseu, apesar de sua coragem lendária, ao ser confrontado com a oferta de imortalidade de Calipso, ressalta sua conexão com sua humanidade e sua identidade ao optar pela terra natal e abraçar uma vida finita ao lado de sua esposa, Penélope. Nesse ponto,ele valoriza mais a efemeridade da vida mortal, repleta de suas lutas, amores, medos e incertezas, do que a promessa de uma eternidade divina sem nenhum desses infortúnios. No entanto, sua resposta eloquente não apenas revela sua determinação em reencontrar Penélope, apesar do receio de enfrentar novamente o mar que tanto lhe trouxe dores, mas também evidencia sua aceitação das dores inerentes à vida. Assim, essa passagem não apenas enriquece a narrativa de Odisseu, mas também convida à reflexão sobre a dualidade da experiência humana: o medo e a coragem diante das tentações de uma vida aparentemente fácil, tranquila e eterna, ou fácil como a morte desejada por Moisés ou Elias.
Hércules foi um destes heróis míticos que nem mesmo teve escolha a não ser enfrentar forças mortais contra as quais ninguém se aventurou. Incumbido pelo rei Euristeu, Hércules enfrentou a Hidra, uma criatura de nove cabeças, que, quando uma era cortada, duas novas cresciam no lugar. Seguindo o exemplo de Hércules ao confrontar a morte certa, Perseu obteve a terrível missão de decapitar a Medusa, uma criatura cujo olhar transformava as pessoas em pedra. No entanto, há uma semelhança temática até agora narrada, ou seja, todos os personagens confiaram na intercessão divina. Assim como Hércules, pois, a ajuda dos deuses se fez presente em cada um dos seus trabalhos, assim como no caso da Hidra. Com Perseu não foi diferente, pois os deuses o presentearam com um escudo capaz de mostrar o reflexo da Medusa sem precisar a encarar. Assim, confiando nos deuses, Hércules derrota o mal que se multiplicava e Perseu cortou a cabeça daquela que petrificava a todos com seu olhar. Multiplicar e Petrificar, o pecado tem esta capacidade de se proliferar no espírito e, consequentemente, de estagnar a alma em meio a armadilhas de autopiedade e escrúpulo.
Por que estas narrativas de confiança destes personagens comove até a atualidade e parece nos encorajar a dar um passo semelhante? Uma provável resposta estaria no fato de que esta resolução de espírito é recompensada com um bem muito maior do que era antes a vida do profeta e do herói. Como podemos ver em Odisseu ao alcançar sua terra natal com mais sabedoria, com um filho crescido e forte e com mais riquezas para seu reino; Perseu ao salvar sua mãe e ganhar de Atena o escudo Égide feito da cabeça da Medusa. Observa-se também nos textos bíblicos, Moisés ao alcançar a terra prometida; Elias ao ser arrebatado para os céus; Jó ao obter muito mais do que tinha antes. Ainda que plenos de medo, incertezas, Deus sempre tira um bem maior tanto para eles quanto para o mundo em forma das mensagens através de suas narrativas.
Pode-se pensar que Deus negligencia as fraquezas que beiram ao pecado, mas não é este o raciocínio, deixe isso para o escrúpulo. Na verdade, Deus não espera nada de ninguém que não seja o exemplo destes personagens: sinceridade, humildade, entrega absoluta de suas fraquezas ao pé da cruz e, sobretudo, esperança Nele. Em outras palavras, não é condenável dobrar o joelho diante do peso da vida, pecado seria jamais se levantar, ou se julgar por cair colocando-se no lugar de Deus por tentar ser perfeito e juiz de si mesmo. Por isso, Ele mesmo deixou registrado nas Escrituras o seu momento, enquanto Homem, de medo e de dor diante de forças terríveis. Essas passagens refletem a profundidade da experiência humana diante do sofrimento, destacando a honestidade emocional e a importância da confiança e entrega absoluta a Deus nestas situações. Mas, sobretudo todas essas histórias dolorosas e redentoras são sintetizadas no exemplo do Deus que se fez homem. Uma forma de ratificar o fato de que ser humano não é pecado em meio ao temor, pecado é fugir da presença de Deus nestas situações, por isso, naqueles momento que mais tememos olhar a Cruz por vergonha ou medo, é justamente nesta hora, que não devemos tirar os olhos do Cristo crucificado.
EDUARDO FARIA | PROFESSOR DO COLÉGIO MAGNIFICAT – UNIDADE DIVINÓPOLIS