Você está aqui:

Amor centrífugo

24 de junho de 2024

É curioso como certas percepções do mistério divino em nossas vidas são despertadas por acontecimentos que nos ferem. Creio que isso dê por causa de um princípio eterno muito simples: não há Cristo sem Cruz, e jamais haverá Cruz sem o Cristo. O próprio ser de Deus, a Sua presença onipotente habita o cerne do ser humano e, com isso, se faz presente no mistério do nosso sofrimento, qualquer que seja ele, por mais banal ou trivial que o achemos. Se tivermos a coragem de romper com os medos interiores e esquadrinharmos os escuros corredores em que nossos sofrimentos, por vezes, nos encerram, lá encontraremos o Cristo que nos sustenta e dá sentido à nossa dor, assim como, na Cruz, aquela morte atroz foi semente que se rompeu, se estraçalhou e gerou ressurreição.

Isto posto, gostaria de partilhar um pouco sobre a nossa forma de amar. Abrindo corajosamente o coração, disposto a encontrar sentido cristão dentro de mim, decido-me por observar meus sofrimentos à luz do que creio e do que espero viver do amor de Deus. Paradoxalmente, de modo violento e suave, Deus me revela a realidade “centrífuga” do Seu amor. Pode soar estranho, talvez até revolucionário usar essa palavra como atributo do amor divino, mas percebo uma profunda novidade do amor de Deus nessa palavra.

Embora eu não seja especialista nas realidades da física, mas suponho estar certo em pensar que uma máquina que atue por força centrífuga lança para fora, para longe os corpos que se aproximam do seu centro. Quando a máquina se encontra em repouso, contudo, novamente aqueles corpos, mansamente, buscam novamente o centro do aparelho e ali aguarda…

Ocorre algo semelhante conosco. O amor de Deus por mim e, consequentemente, o amor com que Ele deseja que eu ame é esse amor centrífugo que, nos momentos de repouso, me atrai mansamente ao seu Centro, à intimidade mais profunda do Seu Coração, mas que também, “violentamente”, me impele, me lança para fora, expulsa-me de mim mesmo e de uma concepção de vida egoísta em direção à realidade concreta daquilo que vivo. O mais interessante de pensar nessa dinâmica é imaginar e perceber que a força para me lançar a essa realidade tangível do meu dia a dia real nasce daquele momento de repouso, em que estou próximo ao “centro da máquina”, pertinho do coração de Deus. Assim, cabe aqui fazermos este questionamento: os meus momentos com Deus, minha intimidade com o Senhor tem me dado forças para me lançar a amar concretamente o meu dia a dia? Quanto mais percebo que existe em mim esse destemor e ousadia, tanto mais clara será a ideia de que estou ou não próximo de Deus.

Outra percepção interessante dessa comparação com o amor de Deus é a de que quanto mais leves e despidos nos aproximamos do coração de Deus e ali, no cerne do nosso sofrimento, o encontramos, mais docilmente o Seu amor nos impulsiona e nos lança. Se, porém, eu me aproximo de Deus armado de diversos sentimentos de autopiedade, mesquinhez, repleto de “pesos”, não serei capaz de me deixar aprimorar, converter por seu amor presente na provação pela qual eu passo, e não sei serei lançado para fora por sua força restauradora. Aliás, na verdade, serei lançado para fora pelas minhas próprias cargas e pesos. E isso, em lugar de me curar, me ferirá e também machucará os outros, porque o que está me lançando é o peso de sentimentos dos quais eu mesmo não quis me deixar curar. Imagine o que seria, por exemplo, colocarmos pequenas pedras de mármore dentro de um liquidificador e liga-lo em sua máxima potência. Além de danificar as finas lâminas do aparelho, que não conseguiria triturar as pedras, barulho e a violência das colisões nos mostrariam como as pedras são lancçadas contra tudo o que está ao seu redor. Torna-se, então, muito revelador pensar que o Amor de Deus me lança aos outros, a servi-los e, curado, leva-me a ser também instrumento de cura; os meus pesos, meu egoísmo, amor-próprio e limites não curados me arremessa contra os outros, ferindo-os e chagando-me também a mim mesmo.

Mais uma vez vem ao meu coração um questionamento: tenho me despido de mim mesmo para que o meu encontro pessoal com Deus seja mais leve e, assim, Ele possa me lançar aos outros como instrumento de cura? Já aceitei a maravilhosa verdade de que Deus de nada me acusa e eu posso me aproximar dele sem qualquer medo a fim de que eu aprenda a amar mais e melhor?

Percebo, enfim, que o amor de Deus que nos atrai ao seu centro para nos lançar aos outros não quer outra coisa, senão nos dar a plena liberdade interior. E a chave, o segredo para essa conquista está na retidão e na humildade. Quando amo de maneira errada, vivendo de exigências de retribuição e consideração, miro em mim mesmo e erro o alvo, acabando por pecar. E, que interessante, a etimologia da palavra PECADO tem justamente o significado de “ERRAR O ALVO”. Cada vez que “amo” dessa forma errada, me escravizo a mim mesmo, negando a Deus a oportunidade de  me tornar livre. Pior do que tudo isso é que, ainda por cima, eu me interponho entre Deus e o irmão, impedindo que a graça do Senhor o alcance.

Quando, porém, sou capaz de amar na liberdade interior que o Senhor me dá, permitindo que seja Ele mesmo a amar os meus irmãos por meio de mim, eu me aproximo e conquisto aquela alma para o Senhor, servindo como uma seta que indica o caminho para a fonte própria daquele mesmo amor. Torno-me como que uma imagem translúcida por onde o outro pode enxergar a pureza que existe em Deus.

Hoje, mais do que nunca, peço ao Senhor que nos dê a graça de viver esse “amor centrífugo”, que nos atrai, nos consola e nos lança para fora de nós mesmos, dispostos a amar os outros.

Roberto Amorim | Missionário da Missão Maria de Nazaré